— Mas...
— Mas, nada — disse Larkin.
Mac acalmou-se imediatamente, odiando-se por ter explodido. Forçou uma risada nervosa.
— Só estava brincando, Peter.
— Tem certeza, Mac? Meu Deus — falou Peter Marlowe, tristemente. -Será que banquei o idiota? Não queria desapontá-los.
— Não, rapaz, é só o meu jeito de brincar. Vamos, conte-nos o que mais aconteceu.
Peter Marlowe contou-lhes o que acontecera e o tempo todo se perguntava se fizera algo errado. Mac era seu melhor amigo, e era astuto e nunca perdia a paciência. Contou-lhes sobre Sean e, quando acabou, sentiu-se melhor. Depois, foi embora. Era a sua vez de dar comida às galinhas.
Quando ele se foi, Mac disse para Larkin:
— Porra... desculpe. Não tinha motivo para estourar daquele jeito.
— Não o culpo, camarada. O rapaz vive com a cabeça nas nuvens. Tem umas idéias esquisitas. Mas nunca se sabe. Talvez o Rei ainda nos possa ser útil.
— É — disse Mac, pensativo.
Peter Marlowe carregava uma caneca cheia de restos de folhas catados. Passou pela área das privadas até chegar aos galinheiros onde ficavam as galinhas do campo.
Havia galinheiros grandes e pequenos, galinheiros para uma única ave magricela, e um imenso galinheiro para 130 galinhas — aquelas que pertenciam ao campo inteiro, cujos ovos eram para dividir por todos. Os outros galinheiros pertenciam a unidades, ou a um conjunto de unidades que haviam grupado seus recursos. Somente o Rei era proprietário sem sócios.
Mac construíra o galinheiro para a unidade de Peter Marlowe. Nele ficavam três galinhas, a fortuna da unidade. Larkin comprara as aves há sete meses, quando a unidade vendera a última coisa que possuía, a aliança de ouro de Larkin. Este não queria vendê-la, mas Mac estava doente, na época, e Peter Marlowe sofria de disenteria, e duas semanas antes as rações do campo haviam sido novamente diminuídas, portanto Larkin a vendera. Mas não através do Rei, e sim através de um dos seus próprios homens, Tiny Timsen, o comerciante australiano. Com o dinheiro, comprara quatro galinhas do comerciante chinês a quem os japoneses deram a concessão do campo, e junto com as galinhas adquirira também duas latas de sardinha, duas latas de leite condensado e meio litro de óleo de palmeira, cor-de-laranja.
As galinhas eram boas, e punham seus ovos direitinho. Mas uma delas morreu, e os homens a comeram. Guardaram os ossos e os puseram numa panela junto com os miúdos, os pés, a cabeça e o mamão verde que Mac roubara num destacamento de trabalho, e fizeram um ensopado. Durante uma semana inteira seus corpos sentiram-se imensos e limpos.
Larkin abrira uma das latas de leite condensado no dia em que a compraram. Os três tomaram uma colher de sopa por dia cada um, até a lata acabar.
O leite condensado não estragou com o calor. No dia em que não havia mais como raspar a lata, eles a ferveram e beberam o líquido. Estava muito bom.
As duas latas de sardinha e a última lata de leite condensado eram a reserva da unidade. Para o caso de alguma grande maré de azar. As latas eram guardadas num esconderijo, vigiado constantemente por um membro do grupo.
Peter Marlowe olhou à sua volta antes de destrancar a porta do galinheiro, certificando-se de que não havia ninguém por perto para ver como a fechadura funcionava. Abriu a porta e viu dois ovos.
— Tudo bem, Nonya — disse suavemente para a galinha de estimação deles — não vou tocar em você.
Nonya estava chocando sete ovos. Custara muita força de vontade à unidade deixar os ovos debaixo dela, mas se tivessem sorte e saíssem sete pintinhos, e se os sete pintinhos vivessem para se transformar em galos ou galinhas, então o bando deles seria grande, eles poderiam deixar uma galinha permanentemente no choco. E jamais teriam que temer a Enfermaria Seis.
A Enfermaria Seis abrigava os cegos, aqueles que perderam a visão graças ao beribéri.
Qualquer vitamina era mágica contra esta ameaça constante, e os ovos eram uma vasta fonte de força e vitamina, geralmente a única disponível. Era por isso que o Comandante do Campo suplicava e exigia mais ovos do Chefe Supremo. Mas, geralmente, só havia um ovo por semana, para cada homem. Alguns homens recebiam um ovo extra por dia, mas a esta altura geralmente era tarde demais.
Deste modo, as galinhas eram vigiadas noite e dia por um oficial de guarda. Mexer numa galinha pertencente ao campo, ou a outra pessoa, era um crime enorme. Certa vez, pegou-se um homem com uma galinha estrangulada nas mãos, e ele foi espancado até a morte por seus captores. As autoridades consideraram o homicídio justificado.
Peter Marlowe ficou no extremo do seu galinheiro, admirando as galinhas do Rei. Eram sete, gordas e gigantescas, em comparação com as demais. Havia um galo no galinheiro, o orgulho do campo. O nome dele era Sunset. Seu esperma gerava belos filhos e filhas, e podia ser contratado como reprodutor por qualquer um que pagasse o preço: o melhor da ninhada.
Até mesmo as galinhas do Rei eram intocáveis e guardadas como as outras.
Peter Marlowe ficou vendo Sunset pegar uma galinha e cruzar com ela, em meio à poeira. A galinha levantou-se do chão e saiu cacarejando e ainda deu uma bicada numa outra galinha. Peter Marlowe desprezou-se por ficar olhando. Sabia que aquilo era uma fraqueza. Só o faria pensar em N’ai, e seu sexo doeria.
Voltou para o galinheiro, verificou se a porta estava bem trancada e foi embora, segurando os dois ovos com todo o cuidado até chegar ao bangalô.
— Peter, amigo — disse Mac, abrindo um sorriso — este é o nosso dia de sorte!
Peter Marlowe pegou o maço de Kooas e dividiu-o em três montinhos.
— Vamos tirar a sorte para ver quem fica com os dois que sobraram.
— Você fica com eles, Peter — disse Larkin.
— Não, vamos tirar a sorte. A carta mais baixa perde. Mac perdeu e fingiu estar aborrecido.
— Que o diabo o leve! — praguejou.
Abriram os cigarros com cuidado e colocaram o tabaco nas suas caixas, misturando-o com quanto fumo tratado de Java possuíam. Depois, dividiram as suas porções em quatro, e guardaram as três outras porções numa outra caixa; Larkin ficou tomando conta dessas outras caixas. Ter tanto fumo junto era muita tentação.
Abruptamente, os céus se abriram e o dilúvio começou.
Peter Marlowe tirou o sarongue, dobrou-o com cuidado e botou-o na cama do Mac. Larkin comentou, pensativo:
— Peter. Veja onde pisa com o Rei. Ele pode ser perigoso.
— Claro. Não se preocupe.
Peter saiu para o temporal. Daí a um momento, Mac e Larkin se despiram e saíram também, reunindo-se aos outros homens nus que curtiam a chuvarada.
Seus corpos recebiam com prazer as vergastadas, os pulmões enchiam-se do ar* fresco, as cabeças se desanuviavam.
E as águas lavavam o fedor de Changi.
5
Depois da chuva, os homens ficaram sentados, saboreando o frescor fugaz, esperando a hora de jantar. A água escorria do telhado e rodopiava nas valas, e o chão era só lama. Mas o Sol brilhava orgulhoso no céu branco e azul.
— Ó, Deus! — exclamou Larkin, agradecido. — Assim está melhor.
— É — concordou Mac, os dois sentados na varanda. Mas o pensamento de Mac estava no seu seringal em Kedah, bem mais para o norte. — O calor tem o seu valor... faz a gente apreciar mais o tempo fresco — disse, suavemente. — É como a febre.
— A Malásia é uma bosta, a chuva é uma bosta, o calor é uma bosta, a malária é unia bosta, os percevejos são uma bosta e as moscas são uma bosta — disse Larkin.
— Não em tempos de paz, homem. — Mac piscou o olho para Peter Marlowe. — Não numa aldeia, hem, Peter, meu rapaz?
Peter Marlowe abriu um sorriso. Contara a eles a maior parte das coisas sobre sua aldeia. Sabia que Mac adivinharia o que ele não havia contado, pois Mac vivera sua vida adulta no Oriente, e amava-o tanto quanto Larkin o odiava.
— É o que dizem — falou, serenamente, e todos sorriram.