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Esposa! Mas que diabo, por que tive que deparar com essa palavra? Grey praguejou e virou o papel.

A primeira frase do outro lado era: “Por que não morri ao deixar o ventre? Por que não expirei quando saía de dentro da barriga?”

Grey ergueu o corpo abruptamente, quando uma pedra veio voando pela janela, bateu contra uma parede e caiu com barulho no chão.

A pedra estava enrolada num pedaço de jornal. Grey apanhou-a e correu para a janela. Mas não havia ninguém à vista. Grey sentou-se e alisou o jornal, que tinha escrito nas bordas: Faço um trato com você. Entrego-lhe o Rei numa bandeja... se fechar os olhos quando eu comerciar um pouquinho no lugar dele, depois que o pegar. Se concordar com o trato, fique de pé diante da choça por um minuto com esta pedra na mão esquerda. A seguir, livre-se do outro tira. Os caras dizem que é um tira honesto, portanto vou confiar em você. .

— O que diz aí, senhor? — perguntou Masters, fitando com olhos turvos o jornal.

Grey amassou o papel, formando uma bola.

— Alguém acha que trabalhamos bem demais para os japoneses — falou, asperamente.

— Mas que filho da mãe! — exclamou Masters, indo até a janela. — O que eles acham que aconteceria se a gente não cuidasse da disciplina? Os sacanas passariam o dia todo se engalfinhando.

— É isso mesmo — concordou Grey. A bola de papel parecia ter vida na sua mão. Se esta oferta for para valer, pensou, o Rei pode sei derrubado.

Não era uma decisão fácil de tomar. Teria que cumprir sua parte no acordo. Sua palavra empenhada não voltava atrás; era um “tira” honesto, e tinha muito orgulho de sua reputação. Grey sabia que faria qualquer coisa para ver o Rei dentro da jaula de bambu, despido dos seus enfeites... chegaria até a fechar um pouco os olhos à transgressão das regras. Ficou imaginando qual dos americanos podia ser o delator. Todos odiavam o Rei, tinham inveja dele... mas quem bancaria o Judas, quem arriscaria as conseqüências, caso fosse descoberto? Fosse quem fosse o homem, jamais poderia ser uma ameaça tão grande quanto o Rei.

E assim, foi lá para fora com a pedra na mão esquerda e examinou atentamente os homens que passavam. Mas nenhum deles deu-lhe qualquer sinal.

Jogou fora a pedra e dispensou Masters. A seguir, ficou sentado na choça, esperando. Já perdera a esperança, quando outra pedra voou pela janela, enrolada no segundo recado: Examine uma lata que está na vala ao lado da Choça 16. Duas vezes ao dia, de manhã e depois da chamada. Ela será a nossa intermediária. Ele está negociando com Turasan, esta noite.

6

Naquela noite, Larkin ficou deitado no seu colchão, sob o mosquiteiro, seriamente preocupado com o Cabo Townsend e o Soldado Gurble. Eles se haviam apresentado a Larkin, após a chamada.

— Mas por que cargas-d’água vocês estavam brigando? — perguntara repetidamente, e a resposta taciturna era sempre a mesma:

— Duas-para-o-alto.

Mas Larkin soubera instintivamente que estavam mentindo.

— Quero a verdade — dissera, com raiva. — Qual é, vocês dois são amigos. Vamos, por que estavam brigando?

Mas os dois homens haviam mantido o olhar no chão, obstinadamente. Larkin os interrogara individualmente, mas cada um, por sua vez, dera a mesma resposta carrancuda:

— Duas-para-o-alto.

— Muito bem, seus filhos da mãe — dissera Larkin finalmente, com voz áspera. — Vou dar-lhes uma última chance. Se não me contarem a verdade, vou transferir os dois do meu regimento. E no que me diz respeito, vocês deixarão de existir!

— Mas Coronel — exclamara Gurble, ofegante — o senhor não faria isso!

— Dou-lhes trinta segundos — dissera Larkin, maldosamente, falando sério. E os homens sabiam que falava sério. E sabiam que a palavra de Larkin era a lei no regimento, pois Larkin era como o pai deles. Ser expulso significaria que não mais existiriam para seus camaradas, e sem estes, eles morreriam. Larkin esperara um minuto. Depois, falara: — Muito bem. Amanhã...

— Eu conto, Coronel — interrompera Gurble. — Esse cretino me acusou de roubar a comida dos meus camaradas. Esse cretino disse que eu estava roubando...

— E estava mesmo, seu filho da mãe nojento!

— Sentido! — trovejara Larkin, impedindo que se atracassem. O Cabo Townsend havia contado primeiro o seu lado da história.

— Este é o meu mês de trabalhar na cozinha. Hoje tivemos que cozinhar para cento e oitenta e oito...

— Quem está faltando? — indagara Larkin.

— Billy Donahy, senhor. Baixou hospital hoje à tarde.

— Continue.

— Bem, senhor. Cento e oitenta e oito homens, com direito a cento e vinte e cinco gramas de arroz por dia, dá um total de vinte e três quilos e meio. Sempre vou pessoalmente ao depósito com um colega para ver o arroz ser pesado e depois o transporto, para me certificar que recebemos toda nossa porção. Bem, hoje estava vigiando a pesagem quando tive uma eólica daquelas. Assim, pedi ao Gurble que carregasse o arroz para a cozinha. Ele é o meu melhor colega, por isso achei que podia confiar nele...

— Não toquei num só grão, seu filho da mãe. Juro por Deus...

— Faltava arroz quando eu voltei! — berrara Townsend. — Quase duzentos e cinqüenta gramas, ou seja, a ração de dois homens!

— Eu sei, mas não...

— Os pesos não estavam errados! Verifiquei-os debaixo do seu nariz, cretino!

Larkin fora com os homens verificar os pesos, e viu que estavam corretos. Não havia dúvida de que a quantidade certa de arroz saíra do depósito, pois as rações eram pesadas publicamente todas as manhãs pelo Tenente-Coronel Jones. Só havia uma resposta.

— No que me diz respeito, Gurble — falara Larkin — você está fora do meu regimento. Está morto.

Gurble saíra para a escuridão, tropegamente, choramingando, e Larkin dissera a Townsend.

— Fique de boca calada sobre esse assunto.

— Puxa vida, Coronel — retrucara Townsend. — Os soldados o fariam em pedaços, se soubessem. E com razão! O único motivo pelo qual não contei a eles é porque ele era meu melhor colega. — De repente seus olhos encheram-se de lágrimas. — Puxa vida, Coronel, nós nos alistamos juntos. Acompanhamos o senhor por Dunquerque e aquela droga de Oriente Médio e toda a Malásia. Eu o conheci quase que a minha vida toda, e teria apostado a minha vida...

Agora, recordando tudo, pouco antes de dormir, Larkin estremeceu. Como é que um homem pode fazer uma coisa dessas, perguntou-se, desanimado. Como? Logo o Gurble, a quem conhecia há tantos anos, que até mesmo trabalhara no seu gabinete, em Sydney!

Fechou os olhos e tirou Gurble da cabeça. Cumprira seu dever, e era seu dever proteger a maioria. Deixou o pensamento vagar, até a mulher Betty, preparando um bife a cavalo, a sua casa com vista para a baía, a sua filhinha, a vida que ia viver depois. Mas quando? Quando?

Grey subiu suavemente os degraus da Choça 16, como um ladrão dentro da noite, dirigindo-se para sua cama. Tirou a calça e se enfiou sob o mosquiteiro, deitando-se nu sobre o colchão, muito satisfeito consigo mesmo. Acabara de ver Turasan, o guarda coreano, esgueirar-se pelo canto da choça americana e sob o toldo de lona; vira o Rei pular cautelosamente a janela para encontrar-se com Turasan. Grey ficara apenas mais um momento nas sombras. Estava apenas verificando a informação do espião, e ainda não havia necessidade de saltar sobre o Rei. Não. Ainda não, agora que o delator provara ser de confiança.

Grey mudou de posição na cama, coçando a perna. Os dedos experientes agarraram o percevejo e o esmagaram. Ouviu o estalido que o inseto fez ao estourar e sentiu o fedor adocicado do sangue que continha... seu próprio sangue.

Em volta do seu mosquiteiro, nuvens de mosquitos zumbiam, buscando o furinho inevitável. Ao contrário da maioria dos oficiais, Grey recusara-se a converter sua cama em beliche, pois detestava ter que dormir acima ou abaixo de outra pessoa. Apesar dos beliches significarem mais espaço.