Os mosquiteiros ficavam presos num arame que dividia ao meio o comprimento da choça. Até mesmo durante o sono os homens estavam presos um ao outro. Quando um homem se virava, ou puxava o mosquiteiro para prendê-lo melhor sob o colchão ensopado, todos os mosquiteiros se sacudiam um pouco, e todos os homens se sentiam cercados.
Grey esmagou outro percevejo, mas não estava concentrado nos insetos. Hoje estava muito feliz... com o dedo-duro, com o seu compromisso de pegar o Rei, com o anel de diamantes, com Marlowe. Estava muito satisfeito, pois solucionara o enigma.
É simples, repetiu de novo consigo mesmo. Larkin sabe quem tem o diamante. O Rei é o único no campo que pode providenciar a venda. Somente os contatos do Rei são bons o bastante para tal. Larkin não iria procurar o Rei diretamente, então mandou Marlowe. Este é o intermediário.
A cama de Grey balançou quando Johnny Hawkins, muito doente, tropeçou nela, semidesperto, dirigindo-se para a privada.
— Cuidado, pelo amor de Deus! — exclamou Grey, irritado.
— Desculpe — disse Johnny, tateando em busca da porta.
Dentro de alguns minutos, Johnny estava de volta, aos tropeções. Algumas pragas sonolentas acompanharam sua trajetória. Mal Johnny chegou a seu beliche, já estava na hora de voltar à privada. Desta vez, Grey não notou a cama balançar, pois estava trancado dentro de si mesmo, prevendo as jogadas prováveis do inimigo.
Peter Marlowe achava-se totalmente desperto, sentado nos degraus duros da Choça 16, sob o céu sem Lua, os olhos, ouvidos e mente perscrutando a escuridão. De onde estava podia ver as duas estradas — a que dividia o campo em dois e a que margeava os muros da cadeia. Tanto os guardas japoneses e os coreanos quanto os prisioneiros se utilizavam dos dois caminhos. Peter Marlowe era a sentinela norte.
Atrás dele, nos outros degraus, sabia que o Capitão-Aviador Cox concentrava-se como ele, perscrutando a escuridão, para ver se havia perigo. Cox vigiava o sul.
O leste e o oeste não eram guardados porque a Choça 16 tinha entradas apenas pelo norte ou sul.
De dentro da choça, e por toda a parte, ouviam-se os ruídos dos adormecidos... gemidos, risadas estranhas, roncos, choramingos, gritos semi-abafa-dos... misturados à suavidade dos murmúrios dos insones. Era uma noite fresca e boa aqui, acima da estrada. Tudo estava normal.
Peter Marlowe teve um sobressalto, como um cão que avista a presa. Pressentira o guarda coreano antes mesmo de tê-lo divisado na escuridão, e quando chegou a ver realmente o guarda, já dera o sinal de advertência.
Nos fundos da choça, Dave Daven não escutou o primeiro assobio, de tão absorto no seu trabalho. Quando escutou o segundo, mais urgente, respondeu-o, arrancou as agulhas, largou-se no catre e prendeu a respiração.
O guarda se arrastava pelo campo, fuzil no ombro, e não viu Peter Marlowe, ou os outros. Mas sentiu seus olhos. Apressou o passo e saiu da esfera do ódio.
Depois de uma eternidade, Peter Marlowe ouviu Cox dar o sinal de tudo-bem, e descontraiu-se novamente. Mas seus sentidos permaneceram alerta.
Nos fundos da choça, Daven recomeçou a respirar. Levantou-se com cuidado sob o grosso mosquiteiro no beliche de cima. Com infinita paciência religou as duas agulhas às extremidades do fio isolante por onde passava a corrente. Depois de uma busca desgastante, sentiu as agulhas entrarem nos buraquinhos da trave de 20-por-20 que servia de cabeceira do beliche. Uma gota de suor formou-se no seu queixo e caiu na trave, quando ele encontrou as duas outras agulhas que estavam ligadas ao fone de ouvido e novamente, após uma busca cega e torturante, sentiu com as pontas dos dedos os buracos que lhes correspondiam, e enfiou as agulhas direitinho na trave. O fone de ouvido começou a funcionar, em meio à estática:
“...e as nossas forças estão-se movendo rapidamente pelas selvas para Mandalay. E aqui terminam as notícias. Aqui fala Calcutá. Vamos resumir as notícias: forças americanas e britânicas estão fazendo o inimigo recuar na Bélgica, e no setor central, na direção de Saint-Hubert, em meio a fortes tempestades de neve. Na Polônia, os exércitos russos estão a 32 quilômetros de Krakow, também sob fortes nevascas. Nas Filipinas, as forças americanas lançaram uma cabeça-de-ponte sobre o Rio Agno, dirigindo-se para Manila. Formosa foi bombardeada à luz do dia por B-29 americanos, sem perdas. Na Birmânia, exércitos britânicos e indianos vitoriosos estão a uns 50 quilômetros de Mandalay. O próximo noticiário será às seis horas, hora de Calcutá.”
Daven pigarreou de leve e sentiu o fio isolante vivo dar um leve repuxão e se soltar, quando Spence, no beliche ao lado, tirou o seu grupo de agulhas da fonte. Rapidamente, Daven soltou as suas quatro agulhas, recolocando-as no seu estojo de costura. Enxugou o suor do rosto, e cocou o lugar onde os percevejos o mordiam. A seguir, soltou os fios do fone de ouvido, apertou com cuidado os terminais, e colocou-o numa bolsa especial na sua sunga, por trás dos testículos. Abotoou a calça e dobrou o fio, enfiando-o pelas presilhas do cinto e dando um nó com ele. Pegou um trapo e enxugou as mãos, depois tapou com cuidado os buraquinhos na trave, enchendo-os de poeira, disfarçando-os perfeitamente.
Ficou deitado na cama por mais um momento para recobrar as forças e se coçando. Quando já estava mais sereno, saiu de sob o mosquiteiro e pulou para o chão. A essa hora da noite nunca se dava ao trabalho de colocar a perna postiça, por isso passou a mão nas muletas e foi-se balançando suavemente em direção à porta. Não fez nenhum sinal ao passar pelo beliche de Spence. A regra era essa. Todo cuidado é pouco.
As muletas rangeram, madeira contra madeira, e pela décima milionésima vez Daven pensou na sua perna. Aquilo já não o incomodava muito, atualmente, embora o coto doesse pra cachorro. Os médicos lhe disseram que logo teria que cortar mais um pedaço dele. Isso já fora feito duas vezes, uma vez uma operação verdadeira abaixo do joelho, em 1942, quando pisara num terreno minado. Outra vez acima do joelho, sem anestesia. Só de pensar nisso, sentiu rangerem os dentes e jurou que jamais passaria por aquilo de novo. Mas dessa próxima vez, a última vez, não seria assim tão ruim. Eles tinham anestesia, aqui em Changi. Seria a última vez, porque não havia mais muita coisa para amputar.
— Oh, alô, Peter — disse, quase tropeçando no colega. — Não o vi.
— Alô, Dave.
— Bela noite, não é? — Dave jogou o corpo com cuidado degraus abaixo. — Minha bexiga está-se engraçando de novo.
Peter Marlowe sorriu. Se Daven dissera isso, significava que as notícias eram boas. Se ele dissesse: “Vou dar uma mijada”, significava que nada estava acontecendo no mundo. Se dissesse: “Meus intestinos estão me matando”, significava uma grande derrota em algum lugar do mundo. Se dissesse: “Segure minha muleta um instante”, significava uma grande vitória.
Embora Peter Marlowe fosse ouvir as notícias detalhadamente no dia seguinte, decorá-las com Spence e contar para as outras choças, gostava de saber de imediato como estavam as coisas. E então ficou sentado, olhando Daven que se arrastava de muletas para o mictório, gostando dele, respeitando-o.
Daven parou, com a muleta rangendo. O mictório era feito de um pedaço dobrado de ferro corrugado. Daven ficou olhando sua urina correr para a extremidade baixa, depois cascatear, espumante, da calha enferrujada para o grande tambor, aumentando a escuma que se formava na superfície do líquido. Lembrou-se de que o dia seguinte era dia de coleta. O tambor seria levado embora, juntado a outros, e levado para as hortas. O líquido seria misturado à água, depois essa mistura seria colocada cuidadosamente, xícara por xícara, sobre as raízes das plantas tratadas e vigiadas pelos homens que plantavam a comida do campo. Esse fertilizante tornaria mais verde as verduras que comiam.