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— Poupe suas forças, Tenente — falou Masters, com voz cansada. — Logo os japoneses darão um jeito nele.

— Fodam-se os japoneses — falou Grey. — Quero pegá-lo. Eu o quero nesta cadeia. E quando tiver terminado com ele... quero-o na Cadeia de Utram Road.

— Utram Road? — indagou Masters, erguendo os olhos, estupefato.

— Isso mesmo.

— Juro que entendo sua vontade de pegá-lo — disse Masters. — Mas, bem, não desejaria isso para pessoa alguma.

— Lá é que é o lugar dele. E é onde vou botá-lo. Porque é um ladrão, um mentiroso, um trapaceiro e um sanguessuga. Um maldito vampiro que se alimenta do resto de nós.

Grey levantou-se e chegou mais perto da janela da choça sufocante da Polícia Militar. Abanou, afastando as moscas que subiam das tábuas do chão, e apertou os olhos contra o brilho refratado do Sol do meio-dia que incidia sobre a terra batida.

— Por Deus — disse — vou vingar-me por todos nós.

Boa sorte, meu chapa, pensou Masters. Se alguém pode pegar o Re», esse alguém é você. Possui a dose certa de ódio. Masters não gostava de oficiais, e não gostava da Polícia Militar. Desprezava Grey em particular, porque Grey viera de soldado, e tentava ocultar dos outros o fato.

Mas Grey não estava só no seu ódio. Changi inteira odiava o Rei. Eles o odiavam por seu corpo musculoso, pelo brilho límpido dos seus olhos azuis. Nesse mundo crepuscular dos semivivos, não havia homens gordos ou bem feitos ou roliços ou macios ou esbeltos ou atarracados. Havia apenas rostos dominados por olhos, encimando corpos que eram só pele sobre nervos sobre ossos. Não havia diferença entre eles, salvo a idade, o rosto e a altura. E nesse mundo todo, apenas o Rei comia feito homem, fumava feito homem, dormia feito homem, sonhava feito homem e tinha cara de homem.

— Você — trovejou Grey. — Cabo! Venha aqui!

O Rei notara a presença de Grey desde que dobrara a esquina da cadeia, não porque pudesse enxergar para dentro da escuridão da choça da Polícia Militar, mas porque sabia que Grey era uma pessoa metódica, e quando se tem um inimigo, é de bom alvitre conhecer seu jeito. O Rei sabia tanto sobre Grey quanto um homem pode saber sobre outro.

Ele saiu da trilha e se dirigiu para a choça isolada, destacada como uma espinha entre as feridas das outras choças.

— Queria falar comigo, senhor? — perguntou o Rei, fazendo continência. O sorriso dele era inexpressivo. Os óculos escuros disfarçavam o desprezo do olhar.

Grey fitava o Rei, do alto de sua janela. As feições retesadas de Grey ocultavam o ódio que era parte dele.

— Aonde vai?

— Vou voltar para minha cabana. Senhor — disse o Rei, pacientemente, enquanto sua cabeça funcionava a todo vapor... houve alguma falha, alguém deu uma de delator, qual era a de Grey?

— Onde arranjou essa camisa?

O Rei comprara a camisa, na véspera, de um Major que a conservara com cuidado durante dois anos, pensando no dia em que teria que vendê-la para comprar comida. O Rei gostava de andar asseado e bem vestido, quando os demais não andavam, e estava satisfeito hoje porque sua camisa era limpa e nova, a calça comprida estava vincada, as meias limpas, os sapatos recém-engraxados e o chapéu sem manchas. Divertia-se ao ver que Grey estava praticamente nu, vestindo apenas calça curta pateticamente remendada e tamancos de madeira, e uma boina da Divisão Blindada, verde e grossa de bolor tropical.

— Eu a comprei — disse o Rei. — Faz muito tempo. Não há lei contra a gente comprar uma coisa... aqui ou em outro lugar. Senhor.

Grey sentiu a impertinência do “Senhor”.

— Muito bem, Cabo. Venha até aqui dentro!

— Por quê?

— Só quero bater um papinho — disse Grey, com sarcasmo.

O Rei controlou a raiva, subiu os degraus, passou pela porta e parou perto da mesa.

— E agora? Senhor.

— Esvazie os bolsos.

— Por quê?

— Obedeça. Sabe que tenho o direito de revistá-lo a hora que quiser. — Grey deixou transparecer um pouco do seu desprezo. — Até mesmo o seu oficial em comando concordou.

— Só porque o senhor insistiu.

— E com bons motivos. Esvazie os bolsos.

Com ar cansado, o Rei obedeceu. Afinal de contas, nada tinha a esconder. Lenço, pente, carteira, um maço de cigarros comprados prontos, sua caixa de tabaco cheia de tabaco cru de Java, papéis de cigarro de arroz, fósforos. Grey certificou-se de que todos os bolsos estivessem vazios, depois abriu a carteira. Lá havia 15 dólares americanos e quase 400 dólares japoneses de Cingapura.

— Onde arranjou este dinheiro? — perguntou Grey com brusquidão, com o suor onipresente pingando do corpo.

— Jogando. Senhor.

Grey soltou uma risada sem alegria.

— Tem um bocado de sorte. E vem durando já há quase três anos, não é?

— Já terminou comigo? Senhor.

— Não. Quero ver seu relógio.

— Está na lista...

— Falei que quero ver o seu relógio!

De cara fechada, o Rei tirou do pulso a tira expansível de aço inoxidável e entregou o objeto a Grey.

A despeito do seu ódio pelo Rei, Grey sentiu uma fisgada de inveja. O relógio era automático, à prova d’água e de choque. Um Oyster Royal. O bem mais precioso de Changi... excetuando o ouro. Ele virou o relógio e olhou para os números gravados no aço, depois foi até a parede de folhas de palmeira e tirou de lá a lista de bens do Rei, limpando-a automaticamente das formigas. Em seguida, verificou meticulosamente o número do relógio para ver se coincidia com o número do relógio Oyster Royal da lista.

— Confere — falou o Rei. — Não se preocupe. Senhor.

— Não estou preocupado — retrucou Grey. — É você quem deve ficar preocupado.

Devolveu o relógio, o qual eqüivalia a quase seis meses de comida. O Rei recolocou o relógio no pulso e começou a guardar a carteira e as outras coisas.

— Ah, sim, o seu anel! — disse Grey. — Vamos conferi-lo.

Mas o anel também conferia com a lista. Constava nela como Um anel de ouro, sinete do Clã Gordon. Ao lado da descrição, havia um desenho do selo.

— Como é que um americano possui um anel Gordon? — Grey já fizera essa pergunta muitas vezes.

— Eu o ganhei no pôquer — respondeu o Rei.

— Que memória notável você tem, Cabo — disse Grey, devolvendo o anel. Ele soubera o tempo todo que o anel e o relógio iam conferir com a lista. Usara a revista apenas como pretexto. Sentia-se compelido, quase como por masoquismo, a ficar perto de sua presa, por algum tempo. Sabia, também, que o Rei não se assustava com facilidade. Muitos haviam tentado pegá-lo, e falharam, pois ele era esperto, cauteloso e muito astuto.

— Por quê? — perguntou Grey com aspereza, subitamente fervendo de inveja do relógio, anel, cigarros, fósforos e dinheiro — você tem tanto e o resto de nós nada?

— Não sei. Senhor. Acho que tenho sorte, só isso.

— Onde arranjou esse dinheiro?

— Jogando. Senhor. — O Rei era sempre educado. Sempre dizia “Senhor” para os oficiais, e fazia continência para os oficiais, oficiais ingleses e australianos. Mas sabia que eles tinham ciência da extensão do seu desprezo pelo “Senhor” e pelas continências. Não era o modo americano. Um homem é um homem, independente dos seus antecedentes, ou família, ou posto. Se você o respeita, chama-o de “Senhor”. Se não o respeita, então não o chama assim, e são apenas os filhos da puta que reclamam. Para o diabo com eles.

O Rei recolocou o anel no dedo, abotoou os bolsos e tirou um pouco de pó da camisa com as pontas dos dedos.

— É só? Senhor. — Notou o lampejo de raiva nos olhos de Grey.