Daven detestava verduras. Mas eram comida, e a gente tinha que comer.
Uma brisa deixou gelado o suor das suas costas, e trouxe consigo o travo do mar, a cinco quilômetros de distância, cinco anos-luz de distância.
Daven ficou pensando em como o rádio estava funcionando perfeitamente. Sentiu-se muito satisfeito consigo mesmo ao lembrar-se como erguera delicadamente uma lasca fina do alto da trave, e como fizera ali embaixo um buraco de 15 centímetros de profundidade. Como tudo isso fora feito em segredo. Como ele levara cinco meses embutindo o rádio, trabalhando à noite e de madrugada e dormindo de dia. Como a tampa se encaixava com tanta perfeição que, quando se cobria com poeira as beiradas, seu contorno não podia ser visto, nem mesmo de muito perto. E como os buracos das agulhas também eram invisíveis quando cobertos de pó.
A idéia de que ele, Dave Daven, era o primeiro no campo a ouvir as notícias enchia-o de orgulho. E tornava-o único. A despeito da perna. Um dia ele ouviria a notícia do término da guerra. Não apenas a guerra européia. A guerra deles. A guerra do Pacífico. Graças a ele, o campo estava ligado ao exterior, e sabia que o terror, o suor e a angústia valiam a pena. Somente ele, Spence, Cox, Peter Marlowe e os dois coronéis ingleses sabiam onde o rádio ficava. Era sensato agir assim, pois quanto menos gente soubesse, menor o perigo.
Claro que havia perigo. Sempre havia olhos indiscretos, olhos em que não se podia necessariamente confiar. Sempre havia a possibilidade de alcagüetes. Ou de se deixar escapar alguma coisa, involuntariamente.
Quando Daven voltou para a porta da choça, Peter Marlowe já se retirara para seu beliche. Daven viu que Cox ainda estava sentado nos degraus opostos, mas isso era de se esperar, pois as regras ditavam que as duas sentinelas não se retiravam ao mesmo tempo. O coto de Daven começou a cocar loucamente, mas não exatamente o coto, e sim o pé que não mais estava lá. Subiu para seu beliche, fechou os olhos e rezou. Sempre rezava antes de dormir, para o sonho não vir, a imagem nítida do querido Tom Cotton, o australiano, que fora pegado com o outro rádio e fora levado sob escolta para a Cadeia de Utram Road, com o chapéu de cule derrubado atrevidamente sobre um dos olhos, cantando debochadamente Waltzing Matilda, e o refrão era “Fodam-se os Japoneses”. Mas no sonho de Daven era ele, não Tommy Cotton. quem ia com os guardas. Ele ia com eles, e ele ia tomado de um terror abjeto.
— Ó, Deus — rezou Daven, lá no íntimo — dai-me a paz da Vossa coragem. Tenho tanto medo e sou tão covarde.
O Rei estava fazendo a coisa de que mais gostava na vida. Contava uma pilha de notas novinhas. Lucro de uma venda.
Turasan segurava educadamente sua lanterna elétrica, com o facho cuidadosamente abafado e focalizado na mesa. Estavam na “loja” como a chamava o Rei, juntinho à choça americana. Agora, do toldo de lona caía outro pedaço de lona, até o chão, ocultando a mesa e os bancos dos olhos onipresentes. Era proibido aos guardas e prisioneiros comerciarem, por ordem dos japoneses, passando a ser, desse modo, uma ordem também do Comandante do Campo.
O Rei tinha armado sua expressão de “tapeado-num-negócio” e contava de cara fechada.
— O.K. — suspirou o Rei finalmente, quando as notas chegaram a 500. — Ichi-bon!
Turasan acenou com a cabeça, assentindo. Era um homem baixo e atarracado, com cara de lua cheia e a boca coalhada de dentes de ouro. Deixara o fuzil descuidadamente encostado à parede da choça, às suas costas. Apanhou a caneta Parker e a reexaminou atentamente. O ponto branco estava lá. A pena era de ouro. Levantou a caneta mais para perto da luz encoberta e apertou os olhos para se certificar, mais uma vez, de que as palavras 14 quilates estavam gravadas na pena.
— Ichi-bon — resmungou, finalmente, e chupou o ar entre os dentes. Também ele afivelara sua expressão de “tapeado-num-negócio”, e ocultava sua satisfação. Por 500 dólares japoneses, a caneta era uma excelente aquisição, e sabia que conseguiria facilmente o dobro por ela, dos chineses de Cingapura.
— Seu maldito negociante ichi-bon — disse o Rei, carrancudo. — Semana que vem, talvez um relógio de puIso ichi-bon. Mas sem grana, não negocio. Tenho que ganhar uma grana.
— Grana demais — falou Turasan, indicando a pilha de notas com a cabeça. — Relógio logo, talvez?
— Talvez.
Turasan ofereceu seus cigarros. O Rei aceitou um, deixando que Turasan o acendesse. A seguir, Turasan chupou o ar entre os dentes pela última vez, e abriu seu sorriso dourado. Botou o fuzil no ombro, curvou-se educadamente e sumiu dentro da noite.
O Rei abriu um largo sorriso enquanto terminava o cigarro. Uma bela noite de trabalho, pensou: 50 dólares pela caneta, 150 para o homem que falsificou o ponto branco e gravou a pena... 300 dólares de lucro. O fato de que a cor sumiria da pena em uma semana não incomodava o Rei nem um pouquinho. Sabia que a esta altura, Turasan já a teria vendido a um chinês. O Rei entrou pela janela da sua choça.
— Obrigado, Max — falou, baixinho, pois a maioria dos americanos na choça já dormia. — Pode descansar, agora. — Separou duas notas de 10 dólares. — Dê a outra ao Dino. — Geralmente não pagava tanto a seus homens por um período tão curto de trabalho. Mas essa noite estava muito generoso.
— Puxa, obrigado.
Max saiu às pressas, e foi dizer ao Dino para relaxar, entregando-lhe uma nota de 10 dólares.
O Rei botou o bule de café na chapa quente. Tirou as roupas, pendurou a calça, e botou a camisa, cueca e meias na cesta de roupa suja. Vestiu uma sunga limpa, quarada ao Sol, e enfiou-se sob o mosquiteiro.
Enquanto esperava que a água fervesse, foi recordando o dia de trabalho. Primeiro, o Ronson. Conseguira que o Major Barry aceitasse 550, menos 55 dólares, que era sua comissão de 10%, e registrara o isqueiro com o Capitão Brough como “ganho no pôquer”. Ele valia pelo menos 900 dólares, fácil; portanto, fora um bom negócio. Do jeito que a inflação está crescendo, pensou, é importante ter o máximo possível da grana em mercadoria.
O Rei lançara o empreendimento do fumo tratado com uma reunião de vendas. Tudo acontecera conforme o planejado. Todos os americanos se haviam oferecido como vendedores, e os contatos ingleses e australianos do Rei acharam ruim. O que era normal. Já combinara comprar 10 quilos de fumo javanês de Ah Lee, o chinês que tinha a concessão da loja do campo, e ele o arranjaria com bom desconto. Uma das cozinhas australianas já concordara em ceder um dos seus fornos diariamente por uma hora, para que toda a leva de tabaco pudesse ser cozida de uma só vez, sob a supervisão de Tex. Como todos os homens trabalhavam na base de comissão, a única despesa do Rei era com o tabaco. Amanhã, o tabaco preparado estaria à venda. Do jeito que ele arrumara tudo, teria um lucro de 100%. O que não era mais do que justo.
Agora que o projeto do tabaco estava em andamento, o Rei estava pronto para atacar o do diamante...
O sibilar da cafeteira fervente interrompeu sua meditação. Saiu de sob o mosquiteiro e destrancou a caixa preta. Botou três colheres cheias de pó de café na água e acrescentou uma pitada de sal. Quando a água levantou fervu-ra, ele a tirou do fogo e esperou até que baixasse.
O aroma do café espalhou-se pela choça, atormentando os homens que ainda estavam acordados.
— Jesus! — exclamou Max, involuntariamente.
— O que foi, Max? — perguntou o Rei. — Não consegue dormir?
— Não. Estou /com a cabeça cheia demais. Estive pensando. Podemos faturar adoidado com aquele tabaco,
Tex mexeu-se, inquieto, sentindo o aroma.
— Esse cheiro me faz lembrar de quando eu procurava petróleo.
— Como? — O Rei derramou água fria para a borra ir para o fundo, depois botou uma colher de sopa cheia de açúcar na sua caneca, e encheu-a.
— A melhor parte da perfuração é de manhã. Depois de um turno da noite suarento e longo nas máquinas. Quando a gente senta com os colegas e toma o primeiro bule escaldante de café, ao alvorecer. E o café é fumegante e doce, e ao mesmo tempo um pouco amargo. E talvez você olhe por entre o emaranhado de torres e vê o Sol nascendo no Texas. — Deu um longo suspiro. — Puxa, isso é que é vida.