Peter Marlowe disse a si mesmo que um homem nu agachado evacuando é a criatura mais feia do mundo... talvez a mais patética.
Por enquanto, havia apenas a promessa de um novo dia, uma névoa mais clara, dedos de ouro espalhando-se pelo céu de veludo. A terra estava fresca, pois chovera durante a noite, e a brisa era fresca e delicada, cheirando a maresia e a jasmim.
É, pensou Peter Marlowe satisfeito, vai ser um bom dia.
Quando acabou, inclinou o cantil, ainda agachado, e lavou os vestígios das fezes, usando com habilidade os dedos da mão esquerda. Sempre a esquerda. A mão direita é para comer. Os nativos não têm palavras para mão esquerda ou mão direita, é somente mão de cocô e mão de comer. E todos os homens usavam água, pois o papel, qualquer papel, era valioso demais. Exceto o Rei. Ele tinha papel higiênico de verdade. Dera um pedaço para Peter Marlowe e este o partilhara com sua unidade, pois era um excelente papel para cigarro.
Peter Marlowe levantou-se, amarrou de novo o sarongue, e voltou para sua choça, na expectativa do desjejum. Seria mingau de arroz e chá fraco, como sempre, mas hoje a unidade tinha também um coco... outro presente do Rei.
Nos poucos dias em que conhecia o Rei, haviam travado uma amizade rara. Os laços eram parte comida, parte fumo e parte ajuda... o Rei curara as úlceras tropicais dos tornozelos de Mac com Salvarsan — curou-as em dois dias, depois de terem supurado durante dois anos. Peter Marlowe sabia também que, embora os três recebessem de braços abertos a fortuna e o auxílio do Rei, gostavam dele especialmente por ele mesmo. Quando se estava com ele, emanava força e confiança. A gente se sentia melhor e mais forte também... era como se fosse possível alimentar-se da magia que o cercava.
— Ele é um feiticeiro! — falou, involuntariamente, Peter Marlowe, em voz alta.
A maioria dos oficiais da Choça 16 ainda dormia, ou estava deitada esperando a hora do café, quando ele entrou. Tirou o coco de sob o travesseiro e pegou o raspador e o facão. A seguir, foi lá para fora e sentou-se num banco. Uma pancada hábil com o facão abriu o coco em duas metades perfeitas, derrubando a água numa vasilha. A seguir, começou a raspar com cuidado metade do coco. Raspas da polpa caíram dentro da água.
A outra metade do coco ele raspou e colocou num recipiente diferente. Botou esta polpa num pedaço de mosquiteiro e espremeu com cuidado, deixando o caldo cair numa xícara. Hoje, era a vez de Mac adicionar o caldo adocicado ao seu mingau de arroz matinal.
Peter Marlowe pensou mais uma vez que alimento maravilhoso era o resíduo do coco. Rico em proteína e completamente sem sabor. No entanto, era só botar uma lasquinha de alho nele, e ficava alho puro. Um quarto de sardinha, e o todo adquiria gosto de sardinha, que daria sabor a muitos pratos de arroz.
De repente, ficou louco de vontade de comer o coco. Estava com tanta fome que nem ouviu os guardas se aproximando. Nem sentiu sua presença, até que já estavam bloqueando agourentamente a porta da choça, e todos os homens estavam de pé.
Yoshima, o oficial japonês, quebrou o silêncio.
— Há um rádio nesta choça.
8
Yoshima esperou cinco minutos para que alguém falasse. Acendeu um cigarro, e o som do fósforo foi como um trovão.
A primeira reação de Dave Daven foi, ó, meu Deus, quem foi o sacana que nos denunciou, ou bobeou? Peter Marlowe? Cox? Spence? Os coronéis? Sua segunda reação foi de terror — um terror absurdamente misturado com alívio — de que o dia tinha chegado.
O medo de Peter Marlowe era igualmente sufocante. Quem deixara escapar o segredo? Cox? Os coronéis? Ora, até mesmo Mac e Larkin não sabem que eu sei! Santo Cristo! Utram Road!
Cox estava petrificado. Encostou-se no beliche, olhando de um par de olhos puxados para o outro, e somente o fato de estar apoiado o impedia de cair.
O Tenente-Coronel Sellars era o encarregado nominal da choça, e sua calça estava pegajosa de medo, quando entrou no recinto com seu assistente, Capitão Forrest.
Bateu continência, o rosto e a papada vermelhos e molhados de suor.
— Bom-dia, Capitão Yoshima...
— Não é um bom dia. Há um rádio aqui. Um rádio contraria as ordens do Imperial Exército japonês. — Yoshima era pequeno, miúdo e impecável. Uma espada samurai pendia do seu cinto grosso. As botas até os joelhos brilhavam como espelhos.
— Não estou sabendo de nada disso. Não. De nada — vociferou Sellars. — Você! — Um dedo trêmulo apontou para Daven. — Sabe de alguma coisa?
— Não, senhor.
Sellars virou-se e olhou para os ocupantes da choça.
— Onde está o rádio? Silêncio.
— Onde está o rádio? — Achava-se quase histérico. — Onde está o rádio? Ordeno que seja entregue imediatamente. Sabe que somos todos responsáveis pelas ordens do Imperial Exército.
Silêncio.
— Levo vocês todos à corte marcial — berrou, sacudindo as bochechas flácidas. — Vão todos ter o que merecem. Você! Como se chama?
— Capitão-Aviador Marlowe, senhor.
— Onde está o rádio?
— Não sei, senhor.
Foi então que Sellars viu Grey.
— Grey! Você não é o Chefe da Polícia Militar? Se existe um rádio aqui, é sua responsabilidade, sua e de mais ninguém. Devia ter comunicado o fato às autoridades. Levá-lo-ei à corte marcial, e vai constar de sua folha...
— Não sei de nenhum rádio, senhor.
— Mas, por Deus, devia saber — berrou Sellars, o rosto contorcido e roxo. Cruzou furioso a choça, até onde ficavam os cinco oficiais americanos. — Brough! O que sabe dessa história?
— Nada. E é Capitão Brough, Coronel.
— Não acredito em você. É bem o tipo de encrenca que vocês causariam, seus malditos americanos. Não passam de uma ralé indisciplinada...
— Não sou obrigado a ouvir essa merda de você!
— Não fale comigo desse jeito. Diga “Senhor” e fique em posição de sentido.
— Sou o oficial americano mais antigo aqui, e não vou tolerar insultos seus, ou de quem quer que seja. Desconheço a existência de um rádio no contingente americano. Desconheço a existência de um rádio nesta choça. E se existisse, pode apostar que não lhe diria. Coronel!
Sellars virou-se e caminhou ofegante até o centro da choça.
— Então, vamos revistar a choça. Todos de pé ao lado das camas! Sentido! Deus tenha piedade do homem que o tiver. Eu, pessoalmente, cuidarei para que seja punido com todo o rigor da lei, seus porcos amotinados...
— Cale-se, Sellars.
Todos enrijeceram o corpo quando o Coronel Smedly —Taylor entrou na cabana.
— Há um rádio aqui e eu estava tentando...
— Cale-se.
O rosto gasto de Smedly-Taylor estava tenso ao caminhar até Yoshima, que observava Sellars com espanto e desprezo.
— Qual o problema, Capitão? — perguntou, sabendo qual era.
— Há um rádio na choça. — A seguir, Yoshima acrescentou, com ar de escárnio: — Segundo a Convenção de Genebra que governa os prisioneiros de guerra...
— Conheço muito bem o código de ética — disse Smedly-Taylor, forçando-se a não olhar para a trave de 20-por-20. — Se acredita que aqui há um rádio, por favor, faça uma revista. Ou se sabe onde está, queira pegá-lo e encerrar o assunto. Tenho muito o que fazer, hoje.
— Sua obrigação é fazer cumprir a lei...
— Minha obrigação é fazer cumprir a lei civilizada. Se querem citar as leis, obedeçam-nas em primeiro lugar. Dêem-nos os alimentos e remédios a que temos direito.
— Um dia o senhor irá longe demais, Coronel.
— Um dia estarei morto. Talvez morra de apoplexia, tentando fazer cumprir as regras ridículas impostas por administradores incompetentes.
— Darei parte de sua impertinência ao General Shima.
— Faça-o, por favor. E aproveite para perguntar-lhe quem deu ordem para que cada homem no campo tenha que pegar vinte moscas por dia, para que sejam reunidas e contadas e entregues diariamente no seu gabinete por mim, pessoalmente.