— Vocês, oficiais superiores, estão sempre reclamando do índice de mortalidade causado pela disenteria. As moscas espalham a disenteria...
— Não é necessário lembrar-me das moscas ou do índice de mortalidade — disse Smedly-Taylor, asperamente. — Dêem-nos as substâncias químicas e a permissão para exigir a higiene nas áreas vizinhas, e teremos toda a Ilha de Cingapura sob controle.
— Os prisioneiros não têm o direito...
— O seu índice de disenteria é exagerado. O seu índice de malária é alto. Antes de virem para cá, não havia malária em Cingapura.
— Pode ser. Mas nós conquistamos vocês aos milhares e capturamos vocês aos milhares. Nenhum homem de honra se permitiria ser capturado. Vocês são todos animais, e como tal têm que ser tratados.
— Ao que me consta, muitos japoneses estão sendo feitos prisioneiros no Pacífico.
— Onde ouviu essa informação?
— Boatos, Capitão Yoshima. Sabe como é. Obviamente incorretos. Como incorreto é dizer que a esquadra japonesa não está mais nos mares, ou que o Japão está sendo bombardeado, ou que os americanos capturaram Guadalcanal, Guam, Rabaul e Okinawa, e que no momento estão prestes a atacar o próprio Japão...
— Mentiras! — A mão de Yoshima estava na espada samurai de sua cinta, e ele a tirou três centímetros da bainha. — Mentiras! O Imperial Exército japonês está ganhando a guerra, e logo terá dominado a Austrália e a América. A Nova Guiné está em nossas mãos, e uma esquadra japonesa, neste exato momento, está diante de Sydney.
— Claro. — Smedly-Taylor deu as costas a Yoshima e correu os olhos pela choça. Rostos sem cor o fitavam. — Todos lá para fora, por favor — disse, suavemente.
Sua ordem foi obedecida em silêncio. Quando a cabana ficou vazia, voltou-se para Yoshima.
— Queira fazer a revista.
— E se eu descobrir o rádio?
— Está nas mãos de Deus.
Subitamente, Smedly-Taylor sentiu o peso dos seus 54 anos. Estremeceu sob a responsabilidade do seu fardo, pois, embora estivesse satisfeito em servir, satisfeito por estar aqui na hora da necessidade e satisfeito por cumprir seu dever, agora tinha que descobrir o traidor. Quando achasse o traidor, teria que puni-lo. Um homem desses tinha que morrer, como Daven morreria, se o rádio fosse descoberto. Deus nos ajude que não seja descoberto, pensou desesperado, é o nosso único elo com a sanidade. Se existe um Deus no céu, que o rádio não seja descoberto! Por favor.
Mas Smedly-Taylor sabia que Yoshima tinha razão numa coisa. Ele deveria ter tido a coragem de morrer como um soldado — no campo de batalha, ou tentando fugir. Vivo, o câncer da lembrança o corroía — a lembrança de que a ambição, a sede de poder e os erros tinham causado o estupro do Oriente, e inúmeras centenas de milhares de mortes inúteis.
Mas, pensou, se eu tivesse morrido, e quanto à minha querida Maisie, e ao John — meu filho lanceiro — e ao Percy — meu filho aviador — e à Trudy, casada tão jovem, grávida tão jovem e viúva tão jovem, e quanto a eles? Nunca mais vê-los ou tocá-los ou sentir de novo o calor do lar.
— Está nas mãos de Deus — repetiu, mas como ele, as palavras eram velhas e muito tristes.
Yoshima deu ordens enérgicas aos quatro guardas, que arrancaram os beliches dos cantos da choça e fizeram uma clareira. A seguir, puxaram o beliche de Daven para a clareira. Yoshima foi para o canto e começou a olhar para as vigas, para o telhado de folhas de palmeira e para as tábuas grosseiras logo abaixo. Sua revista era cuidadosa, mas Smedly-Taylor percebeu subitamente que era apenas para impressioná-lo... o esconderijo já era conhecido.
Lembrou-se daquela noite, há muitos e muitos meses, em que eles o procuraram.
— A decisão é de vocês — dissera. — Se forem apanhados, foram apanhados e fim da história. Não posso fazer nada para ajudá-los... nada. — Escolhera Daven e Cox, e dissera, em voz baixa: — Se o rádio for encontrado... tentem não implicar os outros. Precisam tentar, durante algum tempo. Depois, devem dizer que eu autorizei o rádio. Que eu ordenei que o fizessem.
A seguir, dispensara-os, abençoara-os à sua moda e lhes desejara sorte.
Agora, estavam todos atolados no azar.
Esperou impaciente que Yoshima pusesse mãos à obra na trave, odiando aquela agonia de gato-e-rato. Podia sentir o desespero dos homens lá fora. Mas nada podia fazer, a não ser esperar.
Finalmente, Yoshima também se cansou do jogo. O fedor da choça o incomodava. Foi até o beliche e fez uma revista superficial. A seguir, examinou a trave. Mas seus olhos não conseguiam descobrir as aberturas. De cara fechada, examinou mais de perto, com os dedos longos e sensíveis alisando a madeira. Ainda assim, não as descobria.
Sua primeira reação foi de que fora mal informado. Mas não podia acreditar nisso, pois o informante ainda não fora pago.
Resmungou uma ordem, e um guarda coreano entregou-lhe sua baioneta, com o cabo para a frente.
Yoshima bateu com ele na trave, buscando um som oco. Ah, pronto, achara-o! Bateu de novo. O som oco, outra vez. Mas não conseguia encontrar as fendas. Raivosamente, enfiou a baioneta na madeira.
A tampa se soltou.
— Ora, ora.
Yoshima sentiu orgulho de ter encontrado o rádio. O General ficaria satisfeito. Satisfeito o bastante, quem sabe, para entregar-lhe uma unidade de combate, pois o seu Bushido se revoltava de pagar delatores e lidar com esses animais.
— A quem pertence este beliche? — perguntou Yoshima.
Smedly-Taylor deu de ombros, também ele fingindo que precisava descobrir.
Yoshima lamentava, lamentava sinceramente que Daven só tivesse uma perna.
— Quer um cigarro? — perguntou, oferecendo o maço de Kooas.
— Obrigado. — Daven pegou o cigarro e aceitou o fogo, mas não sentiu o gosto do fumo.
— Como se chama? — perguntou Yoshima, cortesmente.
— Capitão Daven, Infantaria.
— Como perdeu a perna, Capitão Daven?
— Eu... fui atingido por uma mina. Em Johore... ao norte do elevado.
— Foi o senhor quem fez o rádio?
— Fui.
Smedly-Taylor empurrou para longe seu próprio pavor.
— Ordenei ao Capitão Daven que o fizesse. É minha responsabilidade. Ele cumpria ordens minhas.
— É verdade? — perguntou Yoshima, voltando-se para Daven.
— Não.
— Quem mais sabe do rádio?
— Mais ninguém. A idéia foi minha e eu o fiz. Sozinho.
— Por favor, sente-se, Capitão Daven. — A seguir, Yoshima fez um sinal de desprezo na direção de Cox, que estava sentado, soluçando de terror. — Qual é o nome dele?
— Capitão Cox — disse Daven.
— Olhe para ele. Repugnante. Daven deu uma tragada no cigarro.
— Estou com tanto medo quanto ele.
— Mas está controlado. Tem coragem.
— Estou com mais medo do que ele. — Daven manquejou, desajeitadamente, até Cox, sentou-se com dificuldade a seu lado. — Tudo bem, Cox, meu velho — disse, compassivamente, pondo a mão no ombro de Cox. — Está tudo bem. — A seguir, ergueu os olhos para Yoshima. — Cox ganhou a Cruz Militar em Dunquerque antes de completar vinte anos. É outro homem, agora. Construído por vocês, seus filhos da mãe, num período de três anos.
Yoshima controlou o impulso de .bater em Daven. Diante de um homem, mesmo um inimigo, havia um código. Virou-se para Smedly-Taylor e ordenou-lhe que trouxesse os seis homens dos beliches mais próximos do de Daven, e mandou o resto continuar em forma, sob guarda, até novas ordens.
Os seis homens ficaram diante de Yoshima. Somente Spence sabia da existência do rádio, mas, como os demais, negou conhecimento do fato.
— Peguem o beliche e sigam-me — ordenou Yoshima.
Quando Daven tateou em busca da muleta, Yoshima ajudou-o a levantar-se.
— Obrigado — disse Daven.