— Porra, não sei como você consegue — resmungou Peter Marlowe. — Todo o mundo morrendo de fome e você me convida para almoçar.
— Vou comer um pouco de katchang idju.
O Rei destrancou sua caixinha preta e tirou o saco de feijõezinhos verdes, entregando-o a Peter.
— Quer prepará-los?
Enquanto Peter Marlowe os levava até a bica para começar a lavá-los, o Rei abriu uma lata de carne salgada e despejou o conteúdo com cuidado num prato.
Peter Marlowe voltou com os feijões. Estavam bem lavados e não havia nenhuma casca na água limpa. Ótimo, pensou o Rei. Não se precisa dizer ao Peter duas vezes a mesma coisa. E o recipiente de alumínio continha exatamente a quantidade certa de água: seis vezes a altura dos feijões.
Botou-o na chapa quente, acrescentou uma colher de sopa cheia de açúcar e duas pitadas de sal, depois meia lata da carne.
— É o seu aniversário? — indagou Peter Marlowe.
— Hã?
— Katchang idju e carne, numa refeição?
— Você é que não sabe viver.
Peter Marlowe ficou alucinado com o aroma e o barulho do ensopado a ferver. As últimas semanas tinham sido duras. A descoberta do rádio prejudicara o campo. O Comandante japonês “lamentava” ter que diminuir as rações, devido a “colheitas fracas”, e assim até os pequenos estoques reservas das unidades tinham-se acabado. Milagrosamente, não houvera outras repercussões, além da redução da comida.
Na unidade de Peter Marlowe, a redução das rações afetara principalmente a Max. A redução e a inutilidade do seu rádio de cantil.
— Merda — praguejara Mac, depois de semanas tentando localizar o problema. — Não tem jeito, rapazes. Não posso fazer nada, sem desmontar a joça inteira. Tudo parece correto. Sem ferramentas e um tipo de pilha, não consigo achar o defeito.
E então Larkin dera um jeito de arranjar uma pilha minúscula, e Mac reunira suas débeis forças e voltara a testar o rádio, verificando e reverificando. No dia anterior, enquanto testava, dera um suspiro e desmaiara, num profundo coma de malária. Peter Marlowe e Larkin carregaram-no até o hospital, e deitaram-no numa cama. O médico dissera que era apenas malária, mas que com o baço daquele jeito, podia tornar-se muito perigosa.
— O que há, Peter? — perguntou o Rei, notando a súbita seriedade de Marlowe.
— Estava só pensando no Mac.
— O que ele tem?
— Tivemos que levá-lo para o hospital, ontem. Nâ”o está nada legal.
— Malária?
— Tem mais.
— Hã?
— Bem, ele está com a febre. Mas o problema maior não é esse. Ele tem períodos de depressão terrível. Preocupação... com a mulher e o filho.
— Todos os caras casados sofrem assim.
— Não como Mac — explicou Peter Marlowe, tristemente. — Sabe, é que pouco antes de os japoneses desembarcarem em Cingapura, Mac botou a mulher e o filho no último comboio que deixava a ilha. A seguir, ele e sua unidade partiram para Java num junco litorâneo. Quando chegou em Java, soube que todo o comboio fora destruído ou capturado. Não havia prova de nada, somente boatos. E assim, ele não sabe se eles conseguiram passar. Ou se estão mortos. Ou se estão vivos. E se estão... onde estão. O filhinho dele tinha apenas quatro meses de idade.
— Bem, agora o guri está com três anos e quatro meses — falou o Rei, confiantemente. — Regra Número Dois: Não se preocupe com coisa alguma que não possa resolver. — Tirou um vidro de quinino da caixa preta, contou 20 comprimidos e entregou-os a Peter Marlowe. — Tome. Isso dará um jeito na malária dele.
— E quanto a você?
— Tenho de sobra. Não esquente a cabeça.
— Não entendo por que é tão generoso. Dá comida e remédios para nós. E o que lhe damos em troca? Nada. Não entendo.
— Você é um amigo.
— Puxa, fico encabulado de aceitar tanta coisa.
— Deixe pra lá. Tome.
O Rei começou a servir o ensopado. Sete colheradas para ele, e sete para Peter Marlowe. Sobrou cerca de um quarto de ensopado na panela.
Comeram as três primeiras colheradas rapidamente para aliviar a fome, depois terminaram o resto devagar, saboreando.
— Quer mais? — O Rei esperou. Será que o conheço bem, Peter? Sei que podia comer mais uma tonelada. Mas não vai comer, nem que sua vida dependesse disso.
— Não, obrigado. Estou cheio até as tripas.
É bom conhecer o amigo, pensou consigo mesmo o Rei. É preciso ter cuidado. Serviu-se de mais uma colherada. Não porque tivesse vontade. Achou que precisava fazê-lo para não embaraçar Peter Marlowe. Comeu, e guardou o resto.
— Quer preparar-me um cigarro?
Jogou o material para Peter e se afastou. Colocou o resto da carne no resto do ensopado e misturou tudo. Dividiu a mistura em duas partes, que botou em duas latas de comida que tampou e reservou.
Peter Marlowe passou-lhe o cigarro enrolado.
— Prepare um para você — disse o Rei.
— Obrigado.
— Ora, Peter, não espere que eu ofereça. Tome, encha sua caixa.
Tirou a caixa das mãos de Peter Marlowe e lotou-a com o fumo Três Reis.
— O que vai fazer com os Três Reis? Agora que o Tex está no hospital? — indagou Peter Marlowe.
— Nada. — O Rei soltou a fumaça. — A idéia já está esgotada. Os australianos descobriram o processo e estão cobrando menos do que a gente.
— Ah, mas que pena. Como será que descobriram?
— Era um entra e sai, de qualquer modo — disse o Rei, sorrindo.
— Não entendi.
— Entra e sai? A gente entra e sai depressa. Um pequeno investimento para um lucro rápido. Nas duas primeiras semanas, eu já estava coberto.
— Mas você falou que levaria meses para recuperar o dinheiro que investiu.
— Isso era papo de vendedor. Para consumo externo. Um papo de vendedor é um macete para fazer as pessoas acreditarem numa coisa. Todo mundo sempre quer ganhar alguma coisa em troca de nada. E então, você tem que fazer com que acreditem que o estão roubando, que você é o otário, que eles, os compradores, são um bocado mais espertos. Por exemplo. Os Três Reis. A equipe de vendedores, os primeiros compradores, acreditavam que tinham um compromisso comigo, acreditavam que, se trabalhassem duro no primeiro mês, poderiam ser meus sócios e ficarem numa boa, depois, para sempre... com o meu dinheiro. Achavam que eu era um idiota de dar-lhes uma tal oportunidade, depois do primeiro mês. Mas eu sabia que o processo não seria segredo por muito tempo e que o negócio não duraria.
— E como sabia disso?
— Era óbvio. Planejei assim. Eu mesmo revelei o segredo do processo.
— Você o quê?
— É isso aí. Troquei o processo por algumas informações.
— Bem, isso eu entendo. O processo era seu, para fazer dele o que quisesse. Mas, e quanto a todas as pessoas que estavam trabalhando, vendendo o fumo?
— O que é que tem?
— Está me parecendo que você se aproveitou delas. Fez com que trabalhassem durante um mês, quase de graça, e depois puxou o tapete de sob seus pés.
— Puxei, uma ova. Eles também ganharam seus trocados. Estavam achando-me um otário, e fui mais esperto do que eles, só isso. Negócio é isso. — Recostou-se na cama, divertindo-se com a ingenuidade de Peter Marlowe. Este franziu o cenho, tentando compreender.
— Quando alguém começa a falar de negócios, fico totalmente por fora — disse. — Sinto-me um idiota.
— Escute, Não vai demorar muito, e vai estar barganhando com os melhores do ramo — disse o Rei, rindo.
— Duvido.
— Vai fazer alguma coisa hoje à noite? Mais ou menos uma hora depois de escurecer?
— Não, por quê?
— Quer servir de intérprete para mim?
— Com prazer. Quem é, um malaio?
— Um coreano.
— Ah! — A seguir, Peter Marlowe acrescentou, disfarçando depressa: — Claro.