Mac abriu os olhos. As cobertas estavam encharcadas. A febre passara. E sabia que estava vivo de novo.
Peter Marlowe ainda estava sentado ao lado da cama, com a noite às suas costas.
— Alô, meu rapaz. — As palavras eram tão fracas que Peter Marlowe teve que se inclinar para percebê-las.
— Está bem, Mac?
— Tudo bem, meu rapaz. Quase que vale a pena ter a febre, para me sentir tão bem depois. Agora, vou dormir. Traga-me um pouco de comida, amanhã. — Mac fechou os olhos e adormeceu. Peter Marlowe descobriu-o e secou aquela casca de homem.
— Onde posso arranjar umas cobertas secas, Steven? — perguntou, ao ver o enfermeiro cruzando depressa a enfermaria.
— Não sei, senhor — disse Steven. Vira esse rapaz muitas vezes. E simpatizava com ele. Quem sabe... mas, não, Lloyd ficaria louco de ciúmes. Uma outra vez. Tem tempo de sobra. — Quem sabe posso ajudá-lo, senhor.
Steven foi até o quarto leito e tirou a coberta de cima do homem deitado, depois tirou habilmente a coberta debaixo, e voltou.
— Tome. Use estas.
— E quanto a ele?
— Oh! — exclamou Steven, com um sorriso meigo. — Não precisa mais delas. Já vêm buscá-lo para o enterro. Pobrezinho.
— Oh! — Peter Marlowe esticou a cabeça para ver quem era, mas era um rosto que não conhecia. — Obrigado — disse, e começou a arrumar a cama.
— Espere — falou Steven. — Deixe que eu faço. Posso fazê-lo muito melhor do que o senhor. — Orgulhava-se de como sabia arrumar uma cama sem magoar o doente. — E não se preocupe com seu amigo — continuou. — Pode deixar que cuido dele. — Cobriu Mac como se fosse uma criança. — Pronto. — Acariciou a cabeça de Mac por um momento, depois pegou um lenço e enxugou os restos de suor da testa do enfermo. — Estará bem dentro de dois dias. Se tiver alguma comida sobrando... — mas deteve-se e olhou para Peter Marlowe com olhos rasos d’água. — Mas que tolice a minha. Não se preocupe, Steven vai achar alguma coisa para ele. Não se preocupe mesmo. Não há nada mais que possa fazer essa noite, portanto vá andando e tenha uma boa noite de sono. Vamos, seja um bom menino.
Sem achar palavras, Peter Marlowe deixou-se levar para fora. Steven deu um sorriso de boa-noite e voltou lá para dentro.
Em meio à escuridão, Peter Marlowe ficou vendo Steven alisar uma testa febril e segurar uma mão trêmula, afastar com carinho os demônios da noite, acalmar os gritos noturnos, ajeitar as cobertas, ajudar um homem a beber e ajudar um homem a vomitar, e o tempo todo um acalanto, delicado e doce. Quando Steven chegou ao Leito Quatro, parou e olhou para o cadáver. Endireitou-lhe os membros e cruzou-lhe as mãos, depois tirou o avental e cobriu o corpo, o toque como uma bênção. O tórax esbelto e liso e as pernas esbeltas e lisas de Steven brilhavam à meia-luz.
— Pobrezinho — sussurrou, correndo os olhos pelo cadáver. — Pobrezinhos. Ah, meus pobrezinhos — falou, chorando por todos eles.
Peter Marlowe afastou-se dentro da noite, cheio de pena, envergonhado de ter sentido nojo de Steven no passado.
12
Enquanto Peter Marlowe se acercava da choça americana, sentia-se cheio de dúvidas. Lamentava ter concordado tão prontamente em servir de intérprete para o Rei, e ao mesmo tempo estava chateado por não querer fazê-lo. Que grande amigo você é, disse para si mesmo, depois de tudo que ele fez por você.
A sensação esquisita no estômago aumentava. Igualzinho a quando se vai voar numa missão, pensou. Não, não era bem assim. A sensação era igual a que se tem quando o diretor da escola nos manda chamar. A outra é igualmente dolorosa, mas ao mesmo tempo é misturada com prazer. Como a aldeia. Essa faz o coração alçar vôo. Arriscar-se assim, só pela curtição... ou, na verdade, pela comida ou pela garota que pode existir lá.
Ficou-se perguntando pela milésima vez por que o Rei ia até a aldeia, e o que fazia lá. Mas perguntar não seria educado, e sabia que precisava apenas de um pouco de paciência para descobrir. Esse era outro dos motivos por que gostava do Rei. Não oferecia informação alguma, guardava para si a maior parte dos seus pensamentos. É o jeito inglês, disse Peter Marlowe consigo mesmo, satisfeito. Solte um pouquinho de cada vez, quando estiver disposto. O que você é ou quem é interessa só a si mesmo... até que sinta vontade de partilhá-lo com um amigo. E um amigo nunca pergunta. Você tem que se abrir espontaneamente, ou então não se abrir.
Como a aldeia. Meus Deus, pensou. Isso mostra o quanto ele o considera, abrir-se desse jeito. Simplesmente perguntar: Você quer vir junto, da próxima vez em que eu for.
Peter Marlowe sabia que era uma loucura ir à aldeia. Mas talvez agora não fosse assim tanta loucura. Agora havia um motivo de verdade. Um motivo importante. Tentar arranjar uma peça para consertar o rádio — ou arranjar um rádio, completo. Por esse motivo valia a pena correr o risco.
Mas, ao mesmo tempo, sabia que teria ido apenas porque fora convidado, e por causa da provável-comida e provável-garota.
Viu o Rei dentro de uma sombra, conversando com outra sombra, ao lado de uma choça. As cabeças estavam bem juntas, as vozes inaudíveis. Estavam tão entretidos que Peter Marlowe decidiu ignorar o Rei, e começou a subir as escadas para entrar na choça americana, cruzando o facho de luz.
— Ei, Peter — chamou o Rei. Peter Marlowe se deteve.
— Já vou falar com você, Peter. — O Rei voltou-se para a outra figura. -É melhor esperar aqui, Major. Logo que ele chegar, eu o aviso.
— Obrigado — disse o homenzinho, a voz úmida de embaraço.
— Quer um pouco de fumo — ofereceu o Rei, e ele foi aceito com avidez. 0 Major Prouty aprofundou-se nas sombras, mas manteve os olhos fitos no Rei, enquanto este voltava para a própria cabana.
— Senti sua falta, meu chapa — disse o Rei para Peter Marlowe, dando-lhe um soquinho de brincadeira. — Como vai o Mac?
— Vai bem, obrigado. — Peter Marlowe queria sair do facho de luz. Que merda, pensou. Tenho vergonha de ser visto com meu amigo. E isso é uma nojeira. Uma bela nojeira.
Mas não pôde deixar de sentir os olhos do Major observando-o, ou evitar a careta quando o Rei disse:
— Vamos, não vai demorar, depois podemos ir trabalhar.
Grey foi até o esconderijo, para o caso de haver um recado para ele na lata. E havia. O relógio do Major Prouty. Hoje à noite. Marlowe e ele.
Grey jogou a lata de volta à vala com a mesma naturalidade com que a apanhara. Depois, espreguiçando-se, levantou-se e voltou para a Choça 16. Mas o tempo todo sua cabeça trabalhava feito um computador.
Marlowe e o Rei. Estarão na “loja” atrás da choça americana. Prouty. Qual deles? Major! Será o da Artilharia? Ou o australiano? Vamos, Grey, perguntou-se com irritação, onde está o arquivo mental de que tem tanto orgulho? Pronto! Choça 11! Um homenzinho! Dos Pioneiros! Australiano!
Terá alguma ligação com Larkin? Não que eu saiba. Um australiano. Então, por que não lidar com Tiny Timsen, o australiano do câmbio negro? Por que o Rei? Quem sabe a coisa é grande demais para o bico do Timsen. Ou quem sabe é mercadoria roubada... é o mais provável, e por esse motivo o Prouty não vai usar os canais australianos de costume. Deve ser por isso.
Grey deu uma olhada para o relógio de pulso. Foi uma coisa instintiva, pois há três anos não possuía relógio, e nem precisava de um para saber as horas da noite ou do dia. Como todos os demais, sabia a hora, pelo menos a hora que era necessário saber.