Acendeu um cigarro e passou um para Peter Marlowe.
— E assim — continuou, jovialmente — Prouty recebeu novecentos, menos a minha comissão de dez por cento. Pouco, mas não injusto, e não se esqueça, você e eu estávamos correndo todos os riscos. Agora, quanto às despesas. Tive que pagar cem pratas para mandar limpar e polir o relógio e comprar um vidro novo. Vinte para o Max, que farejou a possível venda, dez por cabeça para cada um dos vigias, e mais sessenta para os rapazes que davam cobertura com o jogo. A soma é mil, cento e vinte. Tirando-se mil, cento e vinte de dois mil e duzentos ficam exatamente mil e oitenta pratas. Dez por cento dessa quantia é cento e oito. Simples.
Peter Marlowe sacudiu a cabeça. Tantos números, tanto dinheiro e tanta emoção. Num momento estavam só conversando com um coreano, no momento seguinte ele tinha 110... 108... dólares nas mãos, sem mais aquela. Puxa vida, pensou, exultante. Isso eqüivale a vinte e tantos cocos ou muitos ovos. Mac! Agora vamos poder dar-lhe comida. Ovos, ovos são do que precisa!
Subitamente, escutou o pai falando, ouviu-o com tanta clareza como se estivesse a seu lado. E podia vê-lo, ereto e corpulento na sua farda da Marinha Real.
“Escute, filho. Existe uma coisa chamada honra. Se vai tratar com um homem, diga-lhe a verdade, e ele terá necessariamente que dizer-lhe a verdade, também, caso contrário não terá honra. Proteja o outro homem como espera que ele o proteja. E se um homem não tem honra, não se associe a ele, pois irá maculá-lo. Lembre-se, há pessoas honradas e pessoas sujas. Há dinheiro honrado e dinheiro sujo.”
“Mas este não é dinheiro sujo”, ouviu-se responder ao pai; “não do jeito que o Rei explicou. Estavam-no fazendo de otário. Foi mais esperto do que eles”.
“E verdade. Mas é desonesto vender a propriedade de um homem e dizer-lhe que o preço foi bem menor do que o preço realmente obtido.” “É, mas...”
“Não há mas nem meio mas, meu filho. É verdade que há níveis de honra... mas cada homem tem que ter um único código. Faça o que quiser. A escolha é sua. Há coisas que um homem tem que decidir por si mesmo. Às vezes, é preciso adaptar-se âs circunstâncias. Mas, pelo amor de Deus, guarde-se, e à sua consciência... ninguém mais o fará... e saiba que uma decisão errada na hora certa poderá destruí-lo mais seguramente do que qualquer bala.”
Peter Marlowe sopesou o dinheiro e pensou no que podiam fazer com aquela bolada, Mac, Larkin e ele próprio. Imaginou uma balança, e os pratos estavam pesados de um dos lados. De direito, o dinheiro pertencia ao Prouty e à sua unidade. Talvez fosse a última coisa que possuíssem no mundo. Talvez, por causa do dinheiro roubado, Prouty e sua unidade, nenhum dos quais conhecia, talvez fossem morrer. Tudo por causa da sua cobiça. Contra tudo isso pesava o Mac. A necessidade dele era premente. E a do Larkin. E a minha. A minha também, não posso esquecer de mim. Lembrava-se do Rei dizendo: “Não é preciso aceitar esmola”, e ele vinha aceitando esmolas. Muitas.
O que devo fazer, meu Deus, o que devo fazer? Mas Deus não respondeu.
— Obrigado. Obrigado pelo dinheiro — falou Peter Marlowe. Guardou-o. E todo seu corpo estava consciente de como queimava.
— Obrigado, coisa nenhuma. Você o ganhou. É seu. Trabalhou por ele. Não lhe dei coisa alguma.
O Rei estava radiante, e sua alegria sufocava o auto desprezo de Peter Marlowe.
— Vamos — disse. — Temos que comemorar nosso primeiro negócio juntos. Com o meu cérebro e o seu malaio, ora, ainda vamos ter um vidão! — E o Rei fritou alguns ovos.
Enquanto comiam, o Rei contou a Peter Marlowe que mandara os rapazes comprarem estoques de comida suplementares, quando soube que Yoshima havia encontrado o rádio.
— A gente tem que arriscar nesta vida, Peter, meu chapa. Claro. Logo imaginei que os japoneses iriam tornar a vida bem dura por algum tempo. Mas só para aqueles que não estavam preparados para descobrir uma saída. Olhe para o Tex. O coitado do filho da puta não teve grana nem para comprar um único ovo. Olhe para você e Larkin. Se não fosse por mim, o Mac ainda estaria sofrendo, o pobre filho da mãe. Claro que tenho prazer em ajudar. Gosto de ajudar os meus amigos. Um homem tem que ajudar os amigos, caso contrário nada vale a pena.
— Suponho que sim — replicou Peter Marlowe. Que coisa terrível de se dizer. Estava magoado com o Rei, e não entendia que a mente americana é simples em algumas coisas, tão simples quanto a inglesa. Um americano tem orgulho da sua capacidade de ganhar dinheiro, e está certo. Um inglês, como Peter Marlowe, tem orgulho de morrer por sua Bandeira. E está certo.
Viu o Rei olhar pela janela e notou o brilho repentino dos seus olhos. Acompanhou a direção do olhar do Rei, e viu um homem subindo a trilha. Quando o homem atravessou o facho de luz, Peter Marlowe o reconheceu. O Coronel Samson.
Quando Samson viu o Rei, acenou amistosamente.
— Boa-noite, Cabo — falou, e continuou o seu caminho. O Rei pegou 90 dólares e entregou-os a Peter Marlowe.
— Faça-me um favor, Peter. Junte uma nota de dez a este bolo e dê tudo àquele sujeito.
— Samson? O Coronel Samson?
— Claro. Irá encontrá-lo perto do canto da cadeia.
— Dar-lhe o dinheiro? Sem mais aquela? Mas o que tenho que dizer?
— Diga-lhe que é da minha parte.
Meu Deus, pensou Peter Marlowe, estarrecido, será que o Samson está na folha de pagamento? Não pode ser! Não posso fazer isso. Você é meu amigo, mas não posso chegar para um Coronel e dizer, tome aqui cem pratas da parte do Rei. Não posso!
O Rei percebeu o que estava havendo com o amigo. Oh, Peter, pensou, você não passa de uma criança. A seguir, acrescentou, ora vá para o diabo! Mas jogou fora o último pensamento e se xingou. Peter era o único sujeito no acampamento que jamais quisera ter como amigo, o único sujeito de que precisava. E assim decidiu ensinar-lhe os fatos da vida. Vai ser dureza, Peter, meu chapa, e pode doer um bocado, mas vou ensinar-lhe nem que tenha que quebrá-lo. Você vai sobreviver e vai ser meu sócio.
— Peter — falou — há vezes em que precisa confiar em mim. Jamais o deixaria entrar numa fria. Enquanto você for meu amigo, confie em mim. Se não quiser ser meu amigo, tudo bem. Mas gostaria que fosse meu amigo.
Peter Marlowe percebeu que esta era outra hora da verdade. Pegue o dinheiro em confiança... ou deixe-o e suma.
A vida de um homem está sempre numa encruzilhada. E não somente a sua vida, não se for um homem. Há sempre outras em jogo.
Sabia que um dos caminhos arriscava a vida de Mac e a de Larkin, juntamente com a sua, pois sem o Rei eram tão indefesos quanto qualquer outro homem no campo; sem o Rei não haveria aldeia, pois sabia que não correria o risco sozinho... nem mesmo pelo rádio. O outro caminho poria em risco uma tradição ou destruiria um passado. Samson era uma força no Exército Regular, um homem de casta, posição e fortuna, e Peter Marlowe nascera para ser oficial — como seu pai antes dele, e seu filho depois dele — e uma tal acusação jamais poderia ser esquecida. E se Samson era um assalariado, então tudo aquilo em que lhe ensinaram a acreditar, não teria valor.
Peter Marlowe ficou vendo a si mesmo pegar o dinheiro, sumir na noite, subir a trilha e encontrar o Coronel Samson, e ouvir o homem murmurar:
— Oh, alô, é Marlowe, não é?
Viu a si mesmo passar o dinheiro para o outro.
— O Rei me pediu que lhe desse isto.
Viu os olhos mucosos se iluminarem, quando Samson contou avidamente o dinheiro, enfiando-o na calça puída.
— Agradeça-lhe — ouviu Samson sussurrar — e diga-lhe que detive o Grey durante uma hora. Foi o máximo que pude detê-lo. Foi o bastante, não foi?
— Foi o bastante. Apenas o bastante. — A seguir, ouviu-se dizendo: — Da próxima vez detenha-o por mais tempo, ou mande avisar, seu sacana cretino!
— Diga-lhe que o detive o quanto pude. Diga ao Rei que lamento muito. Diga-lhe que lamento de verdade, e que não vai acontecer de novo. Prometo. Escute, Marlowe. Sabe como são as coisas. Às vezes, fica um pouco difícil.