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— Direi a ele que lamenta muito.

— Sim, sim, obrigado, obrigado, Marlowe. Invejo-o, Marlowe, ser tão íntimo do Rei. Tem sorte.

Peter Marlowe retornou à choça americana. O Rei lhe agradeceu e ele agradeceu o Rei de novo, e saiu para dentro da noite.

Encontrou um pequeno promontório com vista para a cerca de arame e imaginou-se no seu Spitfire, rasgando os céus sozinho, alto, alto, bem alto no céu, onde tudo é puro e limpo, onde não há gente nojenta... como eu... onde a vida é simples e pode-se falar com Deus, e ser de Deus, sem vergonha.

13

Peter Marlowe estava deitado no seu beliche, num estado de semi-adormeci-mento. À sua volta, os homens acordavam, levantavam-se, iam “descarregar”, preparando-se para os destacamentos de trabalho, indo e vindo da choça. Mike já estava ajeitando o bigode, que media 38 centímetros de ponta a ponta; jurara não cortá-lo até que fosse solto. Barstairs já estava de ponta cabeça, fazendo sua ioga, Phil Mint já estava limpando o nariz, com o jogo de bridge já iniciado. Raylins já treinava seus exercícios de canto, Myner já tocava escalas no seu teclado de madeira, o Capelão Grover já tentava animar o pessoal, e Thomas já xingava o atraso do café.

Acima de Peter Marlowe, Ewart, que dormia no beliche superior, acordou gemendo e pendurou as pernas para o lado de fora do beliche.

— ‘Mahlu para a noite!

— Estava-se debatendo pra cachorro. — Peter Marlowe já fizera esse comentário muitas vezes, pois Ewart sempre tinha o sono inquieto.

— Desculpe.

Ewart sempre dizia “Desculpe”. Saltou da cama, pesadamente. O lugar dele não era em Changi. Era a oito quilômetros de distância, no acampamento civil, onde estavam a mulher e a família dele... onde talvez estivessem. Nunca se permitira nenhum contato entre os campos.

— Vamos queimar a cama depois do banho de chuveiro — disse, bocejando. Era baixo, moreno e exigente.

— Boa idéia.

— Ninguém diria que já o fizemos há três dias. Como dormiu?

— Como sempre. — Mas Peter Marlowe sabia que nada mais era como antes, não depois de ter aceito o dinheiro, não depois do Samson.

A fila impaciente para o café já se estava formando, quando levaram o beliche de ferro para fora da choça. Tiraram a cama de cima, e depois arrancaram os postes de ferro que se encaixavam em fendas da cama de baixo. A seguir, tiraram gravetos e cascas de coco do seu setor debaixo da choça e atearam fogo sob as quatro pernas.

Enquanto as pernas aqueciam, pegaram folhas ardentes e mantiveram-nas sob as barras longitudinais e sob as molas. Não demorou e a terra debaixo da cama estava negra de percevejos.

— Pelo amor de Deus, vocês dois — berrou Phil. — Será que têm que fazer isso antes do café? — Era um homem azedo, de peito-de-pombo, com vivos cabelos vermelhos.

Não deram bola. Phil sempre gritava com eles, e sempre queimavam seus beliches antes do café.

— Deus, Ewart — comentou Peter Marlowe. — Dá para pensar que os sacanas podiam pegar o beliche e sair andando com ele.

— Quase que me jogaram para fora da cama, ontem à noite. Bichos nojentos. — Numa súbita onda de raiva, Ewart começou a bater na infinidade de percevejos.

— Calma, Ewart.

— Não posso controlar-me. Eles me deixam todo arrepiado.

Quando haviam completado a cama, deixaram-na esfriando e foram limpar os colchões. Isso levou meia hora. A seguir, os mosquiteiros. Outra meia hora.

A esta altura, as camas já tinham esfriado o bastante para serem tocadas. Remontaram o beliche e levaram-no de volta, e colocaram-no nas quatro latas (cuidadosamente limpas e cheias de água), certificando-se de que as beiradas das latas não tocassem as pernas de ferro.

— Que dia é hoje, Ewart? — perguntou Peter Marlowe distraidamente, enquanto esperavam pelo café.

— Domingo.

Peter Marlowe estremeceu, recordando aquele outro domingo.

Foi depois que a patrulha japonesa o apanhou. Estava num hospital em Bandung, naquele domingo. Naquele domingo, os japoneses disseram a todos os pacientes prisioneiros de guerra que apanhassem seus pertences e começassem a marchar, porque iriam para um outro hospital. Haviam formado filas, às centenas, no pátio. Somente os oficiais superiores não iriam. Diziam os boatos que estavam sendo enviados para Formosa. 0 General também ficou, ele que era o oficial mais antigo, que abertamente andava pelo campo em comunhão com o Espírito Santo. 0 General era um homem aprumado, de ombros retos, e sua farda estava molhada do cuspe dos conquistadores.

Peter Marlowe lembrava-se de ter carregado seu colchão pelas ruas de Bandung, debaixo de um céu quente, com gente silenciosa que gritava enfileirando-se ao longo das ruas, com vestes multicoloridas. A seguir, jogara fora o colchão. Pesado demais. Depois, caíra ao chão, mas logo se levantara. A seguir, os portões da prisão se abriram e os portões da prisão se fecharam. Havia espaço suficiente para se deitar no pátio. Mas ele, e alguns outros, foram trancados sozinhos em celas minúsculas. Havia correntes na parede e um buraquinho no chão que fazia as vezes de latrina, e em volta da latrina havia fezes acumuladas há anos. A terra era coberta de palha fedida.

Na cela ao lado estava um maníaco, um javanês que enlouquecera e matara três mulheres e duas crianças antes que os holandeses o dominassem. Agora, não eram os holandeses os seus carcereiros. Também eles estavam encarcerados. Durante os dias e as noites inteiras, o maníaco sacudia as correntes e berrava.

Havia um buraquinho na porta de Peter Marlowe. Ele ficava deitado na palha, olhando para os pés lá fora, esperando pela comida, e ouvindo os prisioneiros praguejando e morrendo, pois havia peste.

Esperou para sempre.

E então chegou a paz e a água limpa e não havia mais somente um buraquinho no mundo, mas o céu estava lá em cima, e havia água fresca no seu corpo, lavando a sujeira. Abriu os olhos e viu um rosto gentil, que estava de cabeça para baixo, e havia outro rosto, e ambos estavam cheios de paz, e ele pensou que estava realmente morto.

Mas eram Mac e Larkin. Haviam-no encontrado pouco antes de saírem da prisão para um outro campo. Pensaram que era javanês, como o maníaco da cela ao lado, que ainda uivava e sacudia as correntes, pois também ele gritava em malaio e se parecia com os javaneses...

— Vamos, Peter — disse Ewart de novo. — Está na hora do rancho.

— Ah, obrigado.

Peter Marlowe pegou suas vasilhas de comida.

— Está-se sentindo bem?

— Estou. — Depois de um momento, falou: — É bom estar vivo, não é?

No meio da manhã, as notícias correram Changi inteira. O Comandante japonês ia devolver ao campo a ração padrão de arroz, para comemorar uma grande vitória japonesa no mar. O Comandante dissera que uma força-tarefa americana fora totalmente destruída, que deste modo o avanço nas Filipinas fora detido, que naquele mesmo momento as forças japonesas estavam-se reagrupando para a invasão do Havaí.

Boatos e contraboatos. Opiniões e contra-opiniões.

— Uma besteirada! Inventaram isso para cobrir uma derrota!

— Acho que não. Nunca aumentaram a comida para comemorar uma derrota.

— Escute só o paspalho! Aumento! Estão apenas nos devolvendo algo que nos haviam tirado. Não, meu velho... acredite no que digo. Os malditos japoneses estão recebendo o troco merecido. Pode acreditar em mim!

— Porra, mas o que você sabe que nós não sabemos? Tem um rádio, por acaso?

— Se tivesse, pode apostar a calça que não lhe contaria.

— Por falar nisso, e quanto a Daven?

— Quem?

— O tal que tinha o rádio.

— Ah, sim, lembro-me. Mas não o conhecia. Como é que ele era?

— Um cara legal, é o que dizem. Pena que tenha sido preso.

— Gostaria de descobrir o filho da mãe que dedurou ele. Aposto que era da Força Aérea. Ou um australiano. Aqueles filhos da mãe venderiam as almas por meio vintém!