— Certo. Foi sorte eu estar passando. Não posso permitir um oficial brigando com um simples soldado. — Olhou de novo pela porta, odiando o Rei, desejando seu cigarro. — Maldito — falou, sem voltar os olhos para Grey — indisciplinado. Como o resto dos americanos. Bando de gente ruim. Imagine, chamam os oficiais pelo primeiro nome! — Suas sobrancelhas se ergueram, bem alto. — E os oficiais jogam cartas com os soldados! Que barbaridade! Piores que os australianos... e estes são uma parada. Miseráveis! Não são como o Exército Indiano, hem?
— Não. Senhor — retrucou Grey, friamente. O Coronel Brant virou-se rapidamente.
— Não quis dizer... bem, Grey, só porque... — Parou, e de repente ficou com os olhos rasos d’água. — Por que, por que fizeram aquilo? — falou, desalentado. — Por que, Grey? Eu... nós todos os amávamos.
Grey deu de ombros. Se não fosse pelo pedido de desculpas, estaria com pena.
O Coronel hesitou, depois virou-se e saiu da choça. A cabeça baixa, lágrimas silenciosas correndo por seu rosto.
Quando Cingapura caiu, em 1942, os seus soldados sikhs passaram para o lado do inimigo, os japoneses, até quase o último homem, e viraram-se contra os seus oficiais ingleses. Os sikhs estavam entre os primeiros guardas dos prisioneiros de guerra e alguns deles eram bárbaros. Os oficiais dos sikhs não tinham paz. Pois foram apenas os sikhs que mudaram de lado, quase unanimemente, e mais uns poucos de outros regimentos indianos. Os gurkhas foram leais até o último homem, sob tortura e indignidade. E assim o Coronel Brant chorava por seus homens, os homens por quem teria morrido, os homens por quem ainda morria. Grey ficou olhando-o afastar-se, depois viu o Rei fumando ao lado da trilha.
— Ainda bem que eu disse que agora é você ou eu — murmurou consigo mesmo.
Recostou-se no banco, enquanto uma fisgada de dor percorria seus intestinos, relembrando-o de que a disenteria não passara ao largo dele, naquela semana.
— Que vá tudo para o inferno — resmungou, amaldiçoando o Coronel Brant e o pedido de desculpas.
Masters voltou com o cantil cheio, e passou-o para ele. Tomou um gole, agradeceu, e depois começou a planejar como pegaria o Rei. Mas sentiu a fome da hora do almoço, e deixou o pensamento à deriva.
Um leve gemido cortou o ar. Grey olhou abruptamente para Masters, que estava sentado, inconsciente de ter emitido um som, observando o movimento constante das lagartixas nos caibros do telhado, enquanto perseguiam insetos ou fornicavam.
— Está com disenteria, Masters?
Masters afastou desanimado as moscas que faziam mosaicos no seu rosto.
— Não, senhor. Pelo menos, há umas cinco semanas que não a tenho.
— Entérica?
— Não, graças a Deus. Dou a minha palavra. Só amébica. E há quase três meses que não tenho malária. Tenho muita sorte, e estou em boa forma, levando tudo em consideração.
— É. — comentou Grey. Depois, como se tivesse refletido: — Está parecendo em forma. — Mas sabia que teria que arranjar em breve um substituto. Voltou a olhar para o Rei, vendo-o fumar, e nauseado com o desejo de fumar.
Masters gemeu de novo.
— Mas que diabo, o que há com você? — perguntou Grey, irado.
— Nada, senhor. Nada. Devo ter...
Mas o esforço de falar era demasiado, e Masters deixou as palavras irem sumindo e se misturando com o zumbido das moscas. As moscas dominavam o dia, os mosquitos a noite. Não havia silêncio. Nunca. Como seria viver sem moscas, mosquitos e gente? Masters tentou lembrar-se, mas o esforço era grande demais. E então ele ficava sentado, quieto, imóvel, mal respirando, uma casca de homem. E sua alma se retorcia inquieta.
— Muito bem, Masters, pode ir embora — falou Grey. — Vou esperar o seu substituto. Quem é ele?
Masters forçou o cérebro a trabalhar e, depois de um momento, respondeu:
— Bluey... Bluey White.
— Pelo amor de Deus, controle-se — falou Grey, bruscamente. — O Cabo White morreu faz três semanas.
— Ah, desculpe, senhor — disse Masters, debilmente. — Desculpe. Devo ter... É... hã... acho que é Peterson. O inglês. Da Infantaria, acho.
— Está certo. Agora, pode ir almoçar. Mas não remanche para voltar.
— Sim, senhor.
Masters botou o chapéu de cule de palhinha na cabeça, fez continência e se mandou pela abertura da porta, sem porta, puxando para cima os trapos da calça. Deus, pensou Grey, dá para sentir o fedor dele a 20 metros de distância. Precisam dar-nos mais sabão.
Porém, sabia que não era só o Masters. Eram todos eles. Se você não se lavava seis vezes por dia, o suor o envolvia como uma mortalha. E pensando em mortalhas, pensou de novo em Masters... e na marca que este tinha. Quem sabe Masters também tinha ciência dela, e daí, para que se lavar?
Grey tinha visto muitos homens morrerem. Ficou cheio de amargura ao pensar no regimento e na guerra. Maldição, quase gritou, 24 anos e ainda Tenente! E a guerra continuando à sua volta... no mundo todo. Promoções em cada dia do ano. Oportunidades. E cá estou nesse campo de prisioneiros de guerra fedorento, e ainda um Tenente. Ó, Cristo! Se não tivéssemos sido desviados para Cingapura em 1942. Se tivéssemos ido para onde devíamos ir... para o Cáucaso. Se...
— Pare! — exclamou em voz alta. — Você está tão ruim quanto o Masters, seu bestalhão!
No campo, era normal conversar consigo mesmo em voz alta, às vezes. Melhor botar para fora, diziam os médicos, do que prender tudo dentro de si... isso conduzia à insanidade. A maioria dos dias não era assim tão ruim. A gente podia parar de pensar na nossa outra vida, na sua essência — comida, mulheres, lar, comida, comida, mulheres, comida. Mas as noites é que eram perigosas. À noite, a gente sonhava. Sonhava com comida e mulheres. A mulher da gente. E logo se passava a gostar mais de sonhar do que de acordar, e se a gente não tomasse cuidado, sonharia acordado, e os dias se confundiriam com as noites, e a noite com o dia. E então haveria apenas a morte. Suave. Gentil. Era fácil morrer. E uma agonia viver. Exceto para o Rei. Ele não sentia agonia.
Grey ainda o observava, tentando ouvir o que dizia ao homem que se achava ao seu lado, mas estavam longe demais. Grey tentou identificar o outro homem, mas não conseguiu. Pela braçadeira do homem, pôde ver que era um Major. Os. japoneses haviam baixado ordem para que todos os oficiais usassem braçadeiras com as insígnias do posto no braço esquerdo. Em todas as horas. Até mesmo estando nus.
As nuvens negras da chuva aumentavam rapidamente. Raios riscavam o céu do leste, mas ainda assim o Sol brilhava. Uma brisa fétida varreu momentaneamente a poeira, depois deixou que ela se acomodasse.
Automaticamente, Grey usou o mata-moscas de bambu. Uma girada de pulso hábil e semiconsciente e mais outra mosca caiu ao chão, mutilada. Matar uma mosca era um ato de descuido. Se a mutilássemos, então a filha da mãe iria sofrer e pagar, embora apenas parcialmente, o nosso sofrimento. Se a mutilássemos, ela daria gritos mudos até que as formigas e outras moscas viessem lutar por seu corpo ainda vivo.
Mas Grey não sentiu o prazer de sempre em ver o tormento da atormentadora. Estava interessado demais no Rei.
2
— Puxa vida — dizia o Major para o Rei, com jovialidade forçada — e houve aquela vez em que estive em Nova York. Em 1933. Diverti-me à grande. País maravilhoso, os Estados Unidos. Já lhe contei sobre a viagem que fiz a Albany? Era subalterno, na época...
— Sim, senhor — disse o Rei, com enfado. — Já contou. — Achou que já tinha sido educado por tempo suficiente, e ainda podia sentir os olhos de Grey em sua pessoa. Embora estivesse seguro e não tivesse medo, ainda assim queria sair do Sol, para fora do alcance daqueles olhos. Tinha muito o que fazer. E se o Major não dissesse logo o que queria, que fosse para o diabo! -Bem, senhor, se me dá licença. Foi um prazer conversar com o senhor.