— Sou australiano, seu inglês filho da mãe.
— Ah, calminha, estava só brincando.
— Tem um senso de humor gozado, seu sacana.
— Como é, vamos com calma, vocês dois. Está quente demais. Quem me empresta um cigarro?
— Tome um baforada.
— Puxa, mas que gosto forte!
— Folhas de mamoeiro. Eu mesmo as curei. Não é ruim, depois que a gente se acostuma.
— Olhe lá!
— Onde?
— Subindo a estrada. Marlowe!
— É aquele? Puta merda! Ouvi dizer que se ligou ao Rei.
— Foi por isso que o mostrei a você, seu idiota! 0 campo inteiro está sabendo. Tem andado dormindo, ou o quê?
— Não o culpo. Faria o mesmo, se tivesse meia chance. Dizem que o Rei tem dinheiro, anéis de ouro e comida para alimentar um batalhão.
— Ouvi dizer que é homossexual. E que Marlowe é sua nova namorada.
— Isso mesmo.
— É, uma ova. 0 Rei não é homossexual, é só um grande vigarista.
— Também acho que não é homossexual. Mas que é vivo, isso é. Filho da mãe miserável.
— Homossexual ou não, queria estar na pele do Marlowe. Ouviu contar que tem uma pilha enorme de dólares? Eu soube que ele e Larkin estavam comprando uns ovos e uma galinha inteira.
— Está maluco. Ninguém tem tanto dinheiro... exceto o Rei. Eles têm as próprias galinhas. Vai ver que uma delas morreu, só isso! Mais uma das suas lorotas!
— O que acha que Marlowe está levando naquela vasilha?
— Comida. O que mais? Não é preciso saber grande coisa para saber que é comida.
Peter Marlowe dirigia-se para o hospital.
Na tigela de comida, levava um peito de galinha, a perna e a coxa. Peter Marlowe e Larkin haviam-na comprado do Coronel Foster por 60 dólares e um pouco de tabaco e a promessa de um ovo fértil da ninhada que Rajah, filho de Sunset, breve fertilizaria através de Nonya. Haviam decidido, com a aprovação de Mac, dar uma outra chance a Nonya, não matá-la como merecia, pois nenhum dos ovos dera pintinho. Quem sabe não era Nonya, dissera Mac, quem sabe o galo, de propriedade do Coronel Foster, não prestava... e todo aquele bater de asas e bicar e montar as galinhas era só pra inglês ver.
Peter Marlowe ficou sentado com Mac, enquanto este comia a galinha.
— Meu Deus, rapaz, já nem me lembro mais quando me senti tão bem ou tão cheio.
— Que bom. Está com ótima aparência, Mac.
Peter Marlowe contou a Mac de onde viera o dinheiro das galinhas, e Mac falou:
— Fez bem em aceitar o dinheiro. Provavelmente o tal Prouty roubou ou fabricou a coisa. Estava errado ao tentar vender uma mercadoria fajuta. Lembre-se, rapaz, Caveat emptor.
— Então, por que será que me sinto tão culpado? Você e Larkin dizem que agi bem. Embora eu ache que Larkin não esteja tão certo quanto você...
— É o comércio, meu rapaz. Larkin é contador, não é um comerciante de verdade. Quanto a mim, conheço as manhas do mundo.
— Você não passa de um pobre plantador de borracha. Que diabo entende de negócios? Passou anos enfiado num seringal!
— É bom que lhe diga — falou Mac, abespinhado — que grande parte do trabalho de um seringueiro se resume em tratar de negócios. Ora, todos os dias é preciso lidar com os hindus ou os chineses... e esta é uma raça de comerciantes. Ora, meu rapaz, inventaram todos os truques que existem.
E assim continuaram a conversa, e Peter Marlowe ficou feliz ao ver Mac reagir de novo a suas gozações. Quase sem notar, passaram a falar em malaio. E então, Peter Marlowe disse, casualmente:
— Conheceis a coisa que é feita de três coisas? — Por medida de segurança, falava do rádio em parábola. Mac olhou ao redor para se certificar de que não estavam sendo ouvidos.
— Em verdade conheço. O que há com ela?
— Tendes certeza agora da natureza da sua doença?
— Não estou certo... mas quase certo. Por que perguntais?
— Porque o vento trouxe um murmúrio que falava de remédios para curar os vários tipos de doença.
O rosto de Mac se iluminou.
— Wah-lah! — exclamou. — Fizestes um velho muito feliz. Dentro de dois dias sairei daqui. E então, levar-me-eis ao murmurador.
— Não, não é possível. Preciso fazê-lo eu mesmo. E depressa.
— Não vos quero exposto ao perigo — disse Mac, pensativo.
— O vento trouxe esperança. Como está escrito no Alcorão, sem esperança o homem não passa de um animal.
— Talvez fosse melhor esperar do que procurar a vossa morte.
— Eu esperaria, mas o conhecimento que busco tenho que saber hoje.
— Por quê? — perguntou Mac, abruptamente, em inglês. — Por que hoje, Peter?
Peter se amaldiçoou por ter caído na armadilha que planejara tão cuidadosamente evitar. Sabia que, se falasse da aldeia a Mac, este ficaria louco de preocupação. Não que Mac pudesse detê-lo, mas sabia que não iria, se Mac e Larkin lhe pedissem para não ir. Que diabo vou fazer agora, pensou? E, então, lembrou-se do conselho do Rei.
— Hoje, amanhã, não importa. Só estava interessado — falou, e jogou seu trunfo. Levantou-se. O truque mais velho do mundo. — Bem, até amanhã, Mac. Quem sabe Larkin e eu apareçamos aqui logo mais à noite.
— Sente-se, meu rapaz. A não ser que tenha o que fazer.
— Não tenho nada que fazer.
Mac passou nervosamente para o malaio.
— Falais a verdade? Aquele “hoje” nada significava? O espírito do meu pai sussurrava que os moços correm riscos que até o demônio evitaria.
— Está escrito, a escassez de anos não implica falta de sabedoria.
Mac examinava Peter Marlowe, com ar indagador. Ele estará aprontando alguma? Junto com o Rei? Bem, pensou, cansado, Peter já está atolado até a tampa no perigo do rádio, e, afinal, trouxe consigo um terço dele, desde Java.
— Pressinto perigo para vós — falou, finalmente.
— Um urso pode tirar o mel do vespão sem perigo. Uma aranha pode procurar em segurança sob as pedras, pois sabe onde e como procurar. — O rosto de Peter Marlowe manteve-se inexpressivo. — Não temais por mim, ó Velho. Procuro apenas sob as pedras. Mac balançou a cabeça, satisfeito.
— Conheceis o meu recipiente?
— Por certo.
— Creio que adoeceu quando uma gota de chuva entrou por um buraco no seu céu, e tocou uma coisa e apodreceu-a como uma árvore caída na selva. A coisa é pequena, como uma cobrinha, fina como uma minhoca, baixa como uma barata. — Gemeu e se esticou. — Minhas costas estão-me matando — falou, em inglês. — Quer ajeitar o travesseiro para mim, meu rapaz? — Quando Peter Marlowe se debruçou, Mac se ergueu e murmurou no seu ouvido. — Um condensador de acoplamento, trezentos microfarádios.
— Está melhor? — perguntou Peter, quando Mac se recostou.
— Muito melhor, meu rapaz. Agora, vá dando o pira. Toda essa conversa fiada me cansou.
— Sabe que se diverte com ela, seu velho sacana.
— Corte o velho, puki ‘mahlu!
— Senderis! — retrucou Peter Marlowe, e saiu para o Sol. Um condensador de acoplamento, 300 microfarádios. Que diabo é um microfarádio?
O vento que vinha da direção da garagem trazia-lhe o cheiro doce do ar carregado de gasolina, óleo e graxa. Acocorou-se ao lado da trilha, sobre a grama, para saborear o aroma. Meu Deus, pensou, como o cheiro da gasolina me traz lembranças. Aviões e Gosport, Farnborough e oito outras pistas de pouso, e Spitfires e Hurricanes.
Mas não vou pensar neles agora, vou pensar no rádio.
Mudou de posição, sentou-se na posição de lótus, pé direito sobre a coxa esquerda, pé esquerdo sobre a coxa direita, mãos no colo, os nós dos dedos se tocando e os polegares se tocando e os dedos apontando para o umbigo. Muitas vezes já se sentara daquele modo. Ajudava-o a pensar, já que, depois que passava a dor inicial, uma quietude invadia o corpo, e a mente voava livre.
Ficou ali sentado, muito quieto, e os homens passavam por ele, quase sem o notar. Não havia nada de estranho em ver-se um homem sentado naquela posição, ao calor do meio-dia, superbronzeado, e de sarongue. Nada de estranho, mesmo.