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Agora, sei o que tem que ser obtido. De algum modo. Tem que haver um rádio na aldeia. As aldeias são como as pegas — juntam todo o tipo de coisas; e riu, recordando sua aldeia em Java.

Descobrira-a, andando aos tropeções pela selva, exausto e perdido, mais morto do que vivo, longe dos muitos caminhos que entrecruzavam Java. Correra por muitos quilômetros e a data era 11 de março. As forças da ilha haviam capitulado no dia 8 de março, e o ano era 1942. Durante três dias vagara a esmo pela floresta, comido pelos insetos e rasgado pelos espinhos e chupado pelas sanguessugas e ensopado pelas chuvas. Não vira ninguém, não ouvira ninguém desde que saíra do campo de pouso norte, o aeródromo de caças em Bandung. Abandonara sua esquadrilha, o que restava dela, e abandonara o seu Hurricane. Mas antes de fugir, fizera do seu avião morto — retorcido, destruído por bombas e balas traçantes — uma pira funerária. Um homem não podia deixar de, pelo menos, cremar o amigo.

Quando descobriu a aldeia, era a hora do pôr-do-sol. Os javaneses que o cercavam eram hostis. Não tocaram nele, mas a raiva nos seus rostos era visível. Fitaram-no em silêncio, e ninguém fez um movimento para socorrê-lo.

— Podem dar-me um pouco de comida e água? — pedira. Não houve resposta.

A seguir, vira o poço, fora até ele, acompanhado pelos olhos irados, e saciara a sede. A seguir, sentara-se e pusera-se a esperar.

A aldeia era pequena, bem escondida. Parecia rica. As casas, construídas em volta de uma praça, eram sobre estacas e feitas de bambu e folhas de palmeira. E sob as casas via muitos porcos e galinhas. Próximo de uma casa maior havia um curral, com cinco búfalos-da-India dentro. Aquilo queria dizer que a aldeia era rica.

Finalmente, foi levado à casa do chefe da aldeia. Os calados nativos subiram a escada, mas não entraram na casa. Ficaram sentados na varanda, escutando e esperando.

O chefe era velho, moreno-escuro e mirrado. E hostil. A casa, como todas as outras, constava de um grande aposento dividido em pequenas partes por biombos de folhas de palmeira.

No centro da parte destinada a comer, conversar e pensar, via-se uma privada de porcelana, completa com assento e tampa. Não havia canos ligados ao vaso, que ficava no lugar de honra, sobre um tapete trançado. Diante do vaso, sobre outro tapete, acocorava-se o chefe. Seus olhos eram penetrantes.

— O que quer? Tuan! — E o “Tuan” era uma acusação.

— Só queria um pouco de comida e água, senhor... e quem sabe poder ficar aqui durante algum tempo, até me recuperar um pouco.

— Chama-me de senhor, quando há três dias você e o resto dos brancos nos xingavam e cuspiam em nós?

— Nunca os xinguei. Fui mandado para cá para tentar proteger seu país dos japoneses.

— Eles nos libertaram dos holandeses nojentos! Como libertarão todo o Extremo Oriente dos imperialistas brancos!

— Talvez. Mas acho que lamentarão o dia em que eles chegaram!

— Saia da minha aldeia. Vá com o resto dos imperialistas. Vá antes que eu chame os japoneses em pessoa.

— Está escrito: “Se um estranho vier até vós e pedir-vos hospitalidade, recebei-o para serdes bem-visto aos olhos de Alá.”

O chefe da aldeia olhara para ele, apalermado. Pele moreno-escura, bolero curto, sarongue multicolorido e o pano de cabeça enfeitado na escuridão que aumentava.

— O que sabe do Alcorão e das palavras do Profeta?

— Louvado seja o seu nome — respondera Peter Marlowe. — O Alcorão foi traduzido em inglês há muitos anos por muitos homens. — Estava lutando pela vida. Sabia que, se pudesse ficar na aldeia, poderia conseguir um barco para chegar até a Austrália. Não que soubesse manobrar um barco, mas valia a pena correr o risco. O cativeiro seria a morte.

— Você é um dos Fiéis? — perguntara o chefe, atônito.

Peter Marlowe hesitara. Podia facilmente fingir que era muçulmano. Parte do seu treinamento constara do estudo do Livro do Islã. Os oficiais das forças de Sua Majestade tinham que servir em muitas terras. Oficiais hereditários são treinados em muitas coisas acima e além da educação formal.

Se dissesse que sim, estaria a salvo, pois a maioria dos javaneses era muçulmana.

— Não, não sou um dos Fiéis. — Estava cansado, no fim das suas forças. — Pelo menos, não sei se sou. Ensinaram-me a crer em Deus. Meu pai nos costumava dizer, a mim e a minhas irmãs, que Deus tem muitos nomes. Até mesmo os cristãos dizem que existe uma Santíssima Trindade... que existem partes de Deus.

“Não acho que importe que nome se dê a Deus. Deus não vai incomodar-se de ser chamado de Jesus, ou Alá, ou Buda ou Jeová, ou até mesmo Você!... porque, se é Deus, sabe que somos meros mortais e que não sabemos muito de coisa alguma.

“Acredito que Maomé foi um homem de Deus, um profeta de Deus. Acho que Jesus também foi um homem de Deus, como Maomé se refere a ele no Alcorão, o ‘mais imaculado dos Profetas’. Que Maomé tenha sido o último dos Profetas, como alegava, isso eu não sei. Acho que nós, humanos, não podemos ter certeza de nada que se relacione com Deus.

“Mas não creio que Deus seja um velho com longas barbas brancas que fica sentado num trono dourado lá no alto do céu. Não creio, como Maomé prometeu, que os Fiéis irão para um paraíso onde se deitarão em divas de seda e beberão vinho e terão muitas donzelas ao seu dispor, ou que o Paraíso será um jardim cheio de folhagens verdes, riachos puros e árvores frutíferas. Não creio que os anjos tenham asas nas costas.”

A noite cobriu a aldeia. Um bebê chorou e foi ninado até dormir de novo.

— Um dia, saberei ao certo por que nome devo chamar Deus. O dia em que morrer. — O silêncio pesou. — Acho que seria muito deprimente descobrir que não existe Deus.

O chefe da aldeia fizera sinal a Peter Marlowe para sentar-se.

— Pode ficar. Mas sob condições. Jurará obedecer às nossas leis e ser um de nós. Trabalhará nos arrozais e na aldeia, trabalho de homem. Nem mais nem menos do que qualquer outro homem. Aprenderá a nossa língua e falará somente a nossa língua e usará nossas vestes e tingirá a pele. Sua altura e cor dos olhos gritarão bem alto que é um homem branco, mas quem sabe a tintura, as vestimentas e o idioma possam protegê-lo por algum tempo. Talvez possamos dizer que é meio javanês, meio branco. Não tocará em nenhuma mulher daqui sem permissão. E me obedecerá sem discutir.

— De acordo.

— Mais uma coisa. É perigoso ocultar um inimigo dos japoneses. Precisa saber que, quando chegar a hora de escolher entre você e meu povo, para proteger minha aldeia, escolherei a aldeia.

— Compreendo. Obrigado, senhor.

— Jure pelo seu Deus — uma sombra de sorriso perpassara pelo rosto do velho — jure por Deus que concorda com essas condições, e que as obedecerá.

— Juro por Deus que concordo e que obedecerei. E nada farei para prejudicá-los enquanto aqui estiver.

— Já nos prejudica com sua simples presença, meu filho — replicara o velho.

Depois que Peter Marlowe comera e bebera, o chefe disse:

— Agora, não falará mais inglês. Apenas malaio. Deste minuto em diante. É a única maneira de aprender depressa.

— Está bem. Mas, primeiro, posso perguntar-lhe uma coisa?

— Pode.

— O que significa o vaso? Quero dizer, nato há canos ligados a ele.

— Não significa nada, salvo que me dá prazer ver as caras das minhas visitas e ouvi-las pensar “Que coisa ridícula para se ter como enfeite numa casa.”

E o velho dera imensas gargalhadas e as lágrimas correram-lhe pelas faces, e toda a casa ficara alvoroçada, e as suas mulheres vieram acudi-lo e esfregar-lhe as costas e a barriga, e depois todo o mundo ria também, inclusive Peter Marlowe.

Peter Marlowe sorriu de novo, recordando. Aquele sim era um homem! Tuam Abu. Mas hoje não vou pensar mais na minha aldeia, ou meus amigos na aldeia, ou em N’ai, a filha da aldeia que me deram para tocar. Hoje vou pensar no rádio, e em como vou conseguir o rádio, e aguçar minhas faculdades mentais para a aldeia, logo mais.