Soltou-se da posição de lótus, depois esperou pacientemente até que o sangue voltasse a correr novamente em suas veias. Ao derredor, sentia o doce cheiro da gasolina, trazido pela brisa, que também trazia o som de vozes cantando um hino religioso. Vinham do teatro ao ar livre, que hoje era a Igreja Anglicana. Na semana anterior fora uma Igreja Católica, na anterior a Igreja Adventista do Sétimo Dia, e ainda na anterior uma outra igreja qualquer. Eram tolerantes, em Changi.
Havia muitos paroquianos lotando as cadeiras toscas. Alguns estavam lá por fé, outros por falta de fé. Alguns estavam lá para ter alguma coisa para fazer, outros porque não havia mais nada para fazer. Hoje, o serviço religioso estava sendo conduzido pelo Capelão Drinkwater.
A voz do Capelão Drinkwater era melodiosa e sonora. A sinceridade jorrava dele e as palavras da Bíblia ganhavam vida, e davam esperança, e faziam a gente esquecer que Changi era a realidade, e que a barriga da gente estava vazia.
Hipócrita nojento, pensou Peter Marlowe, desprezando Drinkwater, recordando de novo...
— Ei, Peter — Dave Daven murmurara, naquele dia — olhe lá.
Peter Marlowe vira Drinkwater conversando com um cabo mirrado da RAF chamado Blodger. O beliche de Drinkwater ficava num lugar privilegiado perto da porta da Choça 16.
— Aquele deve ser o novo ordenança dele — dissera Daven. Até mesmo no campo a tradição secular era mantida.
— O que aconteceu ao outro?
— Lyles? Disseram-me que estava no hospital. Enfermaria Seis. Peter Marlowe se pusera de pé.
— Drinkwater pode fazer o que quiser com o pessoal do Exército, mas não vai pegar um dos meus.
Caminhara os quatro beliches que os separavam.
— Blodger!
— O que quer, Marlowe? — indagara Drinkwater. Peter Marlowe o ignorara.
— O que está fazendo aqui, Blodger?
— Vim só ver o capelão, senhor. Desculpe, senhor — falara, adiantando-se. — Não consigo vê-lo muito bem.
— Capitão-Aviador Marlowe.
— Ah. Como está, senhor? Sou o novo ordenança do capelão, senhor.
— Suma-se daqui, e antes de pegar um emprego de ordenança, venha primeiro falar comigo!
— Mas, senhor...
— Quem pensa que é, Marlowe? — falara Drinkwater, bruscamente. — Não tem autoridade sobre ele.
— Ele não vai ser seu ordenança.
— Por quê?
— Porque eu disse que não. Pode retirar-se, Blodger.
— Mas, senhor, eu vou cuidar do capelão direitinho, vou mesmo. Trabalharei muito...
— Onde arranjou este cigarro?
— Ora, escute aqui, Marlowe... — começara Drinkwater. Peter Marlowe virara-se violentamente para ele.
— Cale a boca! — Os outros homens da choça pararam o que estavam fazendo e começaram a se aproximar. — Onde arranjou este cigarro, Blodger?
— Foi o capelão que me deu — choramingara Blodger, recuando, assustado com o tom de voz de Marlowe. — Dei a ele o meu ovo. Ele me prometeu fumo em troca do meu ovo diário. Eu quero o fumo, ele pode ficar com o ovo.
— Não há mal nisso — vociferara Drinkwater. — Não há mal em dar um pouco de tabaco para o rapaz. Foi ele que me pediu, em troca de um ovo.
— Já visitou recentemente a Enfermaria Seis? — perguntara Peter Marlowe. — Ajudou-os a admitirem o Lyles? O seu último ordenança? Não tem mais visão, agora.
— Não é culpa minha. Não fiz nada com ele.
— Quantos dos ovos dele você comeu?
— Nenhum. Não comi nenhum.
Peter Marlowe agarrara uma Bíblia e a enfiara nas mãos de Drinkwater.
— Jure sobre a Bíblia, então acreditarei em você. Jure, ou por Deus que acabo com você!
— Juro! — gemera Drinkwater.
— Seu sacana mentiroso — gritara Daven. — Vi você tirar os ovos de Lyles. Todos nós vimos.
Peter Marlowe agarrara a vasilha de comida de Drinkwater, achando o ovo. A seguir o quebrou de encontro ao rosto de Drinkwater, enfiando-lhe a casca boca adentro. Drinkwater desmaiou.
Peter Marlowe jogara-lhe uma tigela de água no rosto, e ele voltara a si.
— Deus o abençoe, Marlowe — murmurara. — Deus o abençoe por ter-me mostrado como estava errado. — Ajoelhara-se ao lado do beliche. — Ó, Deus, perdoe este miserável pecador. Perdoe os meus pecados...
Agora, neste domingo ensolarado, Peter Marlowe escutava Drinkwater terminar o seu sermão. Há muito que Blodger já fora para a Enfermaria Seis, mas Peter Marlowe jamais poderia provar se fora para lá com a ajuda de Drinkwater. Este ainda conseguia muitos ovos, de alguma fonte.
O estômago de Peter Marlowe avisou-lhe de que era hora do almoço.
Quando voltou para sua choça, os homens já estavam esperando, impacientes, vasilha na mão. O extra não ia sair hoje. Ou amanhã, segundo os boatos. Ewart já fora verificar na cozinha. O de sempre. Isso já servia, mas por que cargas-d’água não se apressavam?
Grey estava sentado na beirada de sua cama.
— Ora, Marlowe! — exclamou — está comendo conosco, atualmente? Mas que surpresa agradável.
— É, Grey, ainda estou comendo aqui. Por que não vai brincar de bandido e ladrão? Sabe, provocar alguém que não se possa defender!
— Nem pensar, meu velho. Estou de olho em caça grande.
— Muito boa sorte. — Peter Marlowe pegou suas vasilhas. Do lado oposto, Brough, peruando um jogo de bridge, piscou o olho.
— Tiras! — sussurrou. — São todos iguais.
— É isso aí.
Veio para junto de Peter Marlowe.
— Ouvi dizer que arranjou um novo amigão.
— É verdade. — Peter Marlowe fechou a guarda.
— Ê um país livre. Mas, às vezes, um cara tem que se arriscar e dizer umas verdades.
— É?
— Sim. Companhias perigosas às vezes podem causar problemas.
— Isso e’ verdade em qualquer país.
— Quem sabe — falou Brough, abrindo um sorriso — quem sabe gostaria de tomar uma xícara de café comigo e bater um papo.
— Gostaria, sim. Que tal amanhã? Depois do rancho... — Involuntariamente, usou a palavra do Rei. Mas não se corrigiu. Sorriu, e Brough devolveu o sorriso.
— A bóia chegou! — gritou Ewart.
— Graças a Deus — gemeu Phil. — Quer fazer uma troca, Peter? 0 seu arroz pelo meu ensopado?
— Pode esperar sentado!
— Não custa nada tentar!
Peter Marlowe saiu da choça e entrou na fila da comida. Raylins estava distribuindo o arroz. Ótimo, pensou, não há com que se preocupar hoje.
Raylins era de meia-idade, e calvo. Fora gerente-assistente do Banco de Cingapura e, como Ewart, pertencia ao Regimento Malaio. Em tempos de paz, era formidável pertencer a essa organização. Muitas festas, críquete, pólo. Era preciso pertencer ao Regimento para ser alguém. Raylins também era encarregado, do fundo de refeições, e os banquetes eram a sua especialidade. Quando puseram uma arma em suas mãos, disseram-lhe que estava em guerra, ordenaram-lhe que levasse o seu pelotão para o outro lado do elevado e lutasse contra os japoneses, ele olhara para o Coronel e começara a rir. O serviço dele era contas bancárias. Mas aquilo em nada o ajudara, e tivera que pegar 20 homens, tão destreinados quanto ele próprio, e marchar estrada acima. Marchara, e de repente os seus 20 homens eram três. Treze haviam sido mortos instantaneamente na emboscada. Quatro estavam apenas feridos, deitados no meio da estrada, aos berros. A mão de um deles fora arrancada, e ele fitava o coto com ar apalermado, segurando o sangue na mão que sobrara, tentando derramá-lo de volta no braço. Outro ria, ria, enquanto tentava enfiar as entranhas de volta no buraco aberto.
Raylins ficara olhando idiotamente para o tanque japonês que descia a estrada, com os canhões disparando. Depois, o tanque já tinha passado, e os quatro eram apenas manchas no asfalto. Olhara para os três homens que sobraram — Ewart era um deles. Devolveram-lhe o olhar. E então estavam todos correndo, correndo apavorados para dentro da selva. E depois se perderam. E depois ele ficara sozinho, sozinho numa noite de horror, cheia de sanguessugas e ruídos, e a única coisa que o salvou da insanidade foi uma criança malaia, que o encontrou falando palavras sem nexo, e o levara até uma aldeia. Ele se esgueirara para dentro de um prédio onde estavam os restos de um exército. No dia seguinte, os japoneses fuzilaram dois em cada 10. Ele e mais alguns outros continuaram no prédio. Mais tarde, foram postos num caminhão e mandados para um campo, e ele se achara entre sua gente. Mas jamais pôde esquecer seu amigo Charles, aquele com os intestinos à mostra.