Raylins passava a maior parte do tempo numa névoa. Não conseguia entender por que não estava no seu banco, mexendo com seus números, mímeros limpos e precisos, e por que estava num campo, em que se destacava numa coisa. Podia dividir uma quantidade ignorada de arroz em tantas partes exatamente iguais. Quase até o último grão.
— Oh, Peter — falou Raylins, dando-lhe sua porção — conhecia Charles, não conhecia?
— Conhecia, sim, um bom sujeito.
Peter Marlowe não o conhecia. Nenhum deles o conhecia.
— Acha que ele conseguiu enfiar tudo de volta? — perguntou Raylins.
— Claro que sim.
Peter Marlowe afastou-se com sua comida, enquanto Raylins se virava para o próximo da fila.
— Ah, Capelão Grover, que dia quente, não? Conhecia Charles, não é?
— Sim — respondeu o capelão, olhos fitos na medida do arroz. — Estou certo de que conseguiu, Raylins.
— Que bom, que bom ouvir isso. Que lugar estranho para achar as suas entranhas, do lado de fora, sem mais nem menos.
A mente de Raylins vagueou até o seu banco fresquinho e até a mulher, que veria logo mais à noite, quando saísse do banco, no seu bangalozinho jeitoso, perto do hipódromo. Deixe ver, pensou, hoje à noite teremos cordeiro para o jantar. Cordeiro! E uma cerveja fresca e gostosa. Depois, vou brincar com a Penelope, enquanto a patroa fica na varanda, costurando.
— Ah — falou, feliz, reconhecendo Ewart. — Quer jantar com a gente hoje à noite, Ewart, meu velho? Não quer trazer a patroa?
Ewart resmungou entredentes. Pegou o arroz, o ensopac1 :> e foi-se afastando.
— Calma, Ewart — aconselhou Peter Marlowe.
— Calma, uma ova! Como pode saber o que sinto? Juro por Deus que ainda vou matá-lo.
— Não se preocupe...
— Preocupar! Estão mortas. A mulher e a filha dele estão mortas. Eu as vi mortas. Mas minha mulher e meus dois filhos? Onde estão, hem? Onde? Mortos em algum lugar, também. Têm que estar, depois de todo esse tempo. Mortos!
— Estão no acampamento civil...
— E como você pode saber, meu Deus? Você não sabe, eu não sei, e ele fica só a oito quilômetros daqui. Estão mortos! Ó, meu Deus! — E Ewart sentou-se e começou a chorar, derrubando o arroz e o ensopado no chão. Peter Marlowe apanhou do chão o arroz e as folhas que boiavam no ensopado, e devolveu-os ao prato de Ewart.
— Na semana que vem vão deixá-lo escrever uma carta. Ou quem sabe, deixarão você ir visitá-los. O Comandante do Campo está sempre pedindo uma lista das mulheres e crianças. Não se preocupe, estão bem. — Peter Marlowe deixou-o chorando com a cara enfiada no arroz, pegou sua própria tigela e foi para a choça.
— Alô, camarada — disse Larkin. — Foi ver o Mac?
— Fui. Está muito bem. Já começou a se irritar, quando se fala na idade dele.
— Vai ser bom ter o velho Mac de volta. — Larkin enfiou a mão sob o colchão e tirou de lá uma vasilha de comida sobressalente. — Tenho uma surpresa! — Destampou a vasilha e revelou um quadrado de cinco centímetros de uma substância castanha, semelhante a uma massa.
— Por tudo que há de mais sagrado! Blachang! Onde foi que arranjou?
— Surripiei-o, é claro.
— O senhor é um gênio, Coronel. Gozado que não senti o cheiro. — Peter Marlowe se inclinou e tirou um pedacinho do blachang. — Isto vai-nos durar umas duas semanas.
Blachang era uma iguaria nativa, fácil de fazer. Na época apropriada, ia-se para a praia e pegava-se com rede as inúmeras criaturinhas do mar que pairavam nas ondas. Depois, era só enterrá-las numa cova forrada de algas marinhas, cobri-las com mais algas marinhas e esquecê-las por dois meses.
Quando se abria a cova, os peixes tinham-se decomposto e formado uma pasta fedorenta. Só o fedor dela quase lhe arrancava fora a cabeça, e destruía o seu olfato por uma semana. Prendendo a respiração, você tirava a pasta da cova e fritava-a. Mas tinha que ficar contra o vento, senão sufocava. Quando esfriava, era só dar-lhe a forma de blocos, e vendê-la por uma fortuna. Antes da guerra, 10 centavos por um cubo. Agora, talvez 10 dólares por uma lasca. Por que uma iguaria? Era proteína pura. E uma fraçãozinha dela dava gosto a uma tigela inteira de arroz. Claro que era fácil pegar desinteria com ela. Mas se tivesse sido envelhecida da maneira correta, e cozida da maneira certa, e não tivesse sido tocada pelas moscas, não tinha perigo.
Mas a gente nunca perguntava. Simplesmente dizia: “O senhor é um gênio, Coronel”, punha um pouco no prato de arroz e saboreava.
— Vamos levar um pouco para o Mac, hem?
— Boa idéia. Mas ele na certa vai reclamar de que não está bem cozido.
— O velho Mac se queixaria se estivesse perfeitamente cozido... — Larkin se interrompeu. — Ei, Johnny — chamou um homem alto que ia passando, puxando pela trela um vira-lata esquelético. — Quer um pouco de blachang, meu camarada?
— Se quero?
Deram-lhe uma porção numa folha de bananeira, falaram do tempo e perguntaram como ia o cachorro. John Hawkins amava seu cão acima de todas as coisas. Dividia com ele sua comida — é espantoso ver as coisas que um cachorro consegue comer — e o animal dormia no seu beliche. Rover era um bom amigo. Fazia um homem sentir-se civilizado.
— Querem jogar um pouco de bridge, logo mais? Trarei um quarto parceiro — disse Hawkins.
— Hoje à noite não posso — falou Peter Marlowe, aleijando moscas.
— Posso convidar o Gordon, da choça vizinha — sugeriu Larkin.
— Ótimo. Depois do jantar?
— Certo, até lá.
— Obrigado pelo blachang — disse Hawkins, enquanto ia embora, com Rover latindo contente a seu lado.
— Porra, como ele consegue o bastante para se alimentar e àquele vira-lata, é uma coisa que não entendo — falou Larkin. — Ou como consegue evitar que o cão avance na comida de outro cara qualquer!
Peter Marlowe mexeu o arroz, misturando cuidadosamente o blachang. Tinha muita vontade de partilhar com Larkin o segredo da viagem de hoje à noite. Mas sabia que era perigoso demais.
14
Sair do campo era bastante simples. Só uma corrida curta até uma parte ensombreada da cerca de seis voltas de arame; em seguida, atravessá-la com facilidade, e depois uma corrida rápida para a selva. Quando pararam para tomar fôlego, Peter Marlowe desejou estar de volta em segurança, conversando com Mac, Larkin, ou até mesmo Grey.
Todo esse tempo, disse para si mesmo, estive querendo estar aqui fora, e agora que estou, morro de medo.
Era uma coisa estranha... achar-se do lado de fora, olhando para o lado de dentro. De onde estavam, podiam ver o campo. A choça americana ficava a uns 100 metros de distância. Havia homens andando para cima e para baixo. Hawkins levava o cachorro para passear. Um guarda coreano patrulhava o campo. As luzes estavam desligadas nas diversas choças, e a verificação noturna já fora feita há muito tempo. E, no entanto, o campo estava aceso, com os insones. Era sempre assim.
— Vamos indo, Peter — sussurrou o Rei, e eles se aprofundaram ainda mais na vegetação.
O planejamento fora bom. Até agora. Quando ele chegara na choça, o Rei já estava preparado.