— É preciso ter ferramentas para fazer um serviço direito — dissera, mostrando-lhe um par de botas japonesas, com solas de crepe e couro macio e silencioso, bem engraxadas, e o “traje”: uma calça chinesa preta e uma blusa curta.
Somente Dino estava por dentro da viagem. Fizera os dois embrulhos e largara-os, secretamente, no ponto onde cruzariam a cerca. Depois voltara, e só então Peter Marlowe e o Rei saíram andando, despreocupadamente, dizendo que iam jogar bridge com Larkin e outro australiano. Tiveram que esperar mais meia hora angustiante antes de o caminho estar livre para correrem para o fosso ao lado da cerca, mudarem de roupa e cobrirem de lama o rosto e as mãos. Mais um quarto de hora antes de poderem correr para a cerca, sem serem observados. Depois que haviam passado, e estavam em posição, Dino viera buscar as roupas que deixaram para trás.
A selva à noite. Sinistra. Mas Peter Marlowe sentia-se em casa. Era igualzinho a Java, aos arredores de sua aldeia, portanto seu nervosismo diminuiu um pouco.
O Rei mostrava o caminho, sem hesitar. Já fizera a viagem cinco vezes, anteriormente. Caminhava com todos os sentidos alertas. Tinha-se que passar por um guarda. Ele não tinha uma trajetória definida, apenas patrulhava ao acaso. Mas o Rei sabia que, na maioria das vezes, o guarda encontrava uma clareira qualquer e dormia.
Depois de um período de ansiedade, no qual cada folha ou graveto podre parecia anunciar aos gritos sua passagem, e cada galho vivo parecia querer detê-los, chegaram à trilha. Haviam passado pelo guarda. A trilha levava ao mar. E depois, à aldeia.
Cruzaram a trilha e começaram a circular. Acima do pesado teto de folhagens, uma meia-lua estava espetada no céu sem nuvens. A quantidade certa de luz para dar-lhes segurança.
Liberdade. Nada de cercas de arame e nada de gente. Privacidade, finalmente. E aquilo tornou-se um repentino pesadelo para Peter Marlowe.
— O que houve, Peter? — sussurrou o Rei, sentindo que havia algo errado.
— Nada... é só que... bem, é um choque estar do lado de fora.
— Logo se acostuma. — O Rei olhou para o relógio. — Temos cerca de um quilômetro e meio à nossa frente. Estamos adiantados, portanto é melhor esperarmos.
Descobriu um local com muitas trepadeiras retorcidas e árvores caídas, e encostou-se a elas.
— Podemos ficar esperando aqui.
Esperaram e escutaram a floresta. Grilos, sapos, chilreios repentinos. Silêncios repentinos. O rugido de alguma fera desconhecida.
— Um cigarro viria a calhar.
— Para mim, também.
— Mas não aqui. — A mente do Rei estava funcionando. Metade dela estava atenta aos ruídos da selva. A outra metade, a todo o vapor, repassava a estratégia do futuro negócio. É, falou consigo mesmo, é um bom plano.
Verificou a hora. O ponteiro dos minutos andava devagar. Mas dava-lhe mais tempo para planejar. Quanto mais se planeja antes de uma transação, melhor. Nenhum deslize, e um lucro maior. Graças a Deus pelos lucros! O cara que inventou os negócios é que foi um verdadeiro gênio. Compre por pouco e venda por muito. Use a cabeça. Arrisque-se, e o dinheiro vai entrar aos borbotões. E com dinheiro, tudo é possível. Principalmente, o poder.
Quando sair daqui, pensou o Rei, vou ser milionário. Vou ganhar tanto dinheiro que vai fazer o Forte Knox parecer um cofrinho de criança. Vou criar uma organização, cheia de tipos leais, mas carneiros. Os “crânios”, sempre se pode comprar. E uma vez que se saiba o preço de um homem, pode-se usá-lo ou abusá-lo, à vontade. É isso que faz o mundo girar. Existe a elite, e o resto. Eu sou a elite. E vou continuar sendo.
Nada mais de ser abusado, ou empurrado de cidade em cidade. Isso já passou. Eu era apenas um garoto. Amarrado ao Pai — amarrado a um homem que servia mesas, ou enchia o tanque dos carros de gasolina, ou fazia entrega de catálogos telefônicos, ou transportava lixo, ou choramingava uma esmola para comprar uma garrafa. E depois, limpar a sujeira. Nunca mais. Agora, os outros vão limpar a minha sujeira.
Só o que preciso é de grana.
“Todos os homens sã”o criados iguais... certos direitos inalienáveis.”
Graças a Deus pelos Estados Unidos, o Rei disse para si mesmo, pela bilionésima vez. Graças a Deus nasci americano.
— É a terra de Deus — falou, quase que consigo mesmo.
— Como?
— Os Estados Unidos.
— Por que?
— É o único lugar no mundo onde se pode comprar qualquer coisa, onde se tem uma chance de vencer. Isso é importante, se você não nasceu em berço de ouro, Peter, e muito poucos nasceram. Mas se não nasceu, e quer trabalhar, ora, há tantas, mas tantas oportunidades, que é de deixar um cara tonto. E se um cara não trabalha e não se ajuda, porra, então não presta, e não é americano, e...
— Escute! — avisou Peter Marlowe, subitamente alerta. De longe vinha o leve som de passos que se aproximavam.
— É um homem — sussurrou Peter Marlowe, enfiando-se cada vez mais para dentro da proteção das folhagens. — Um nativo.
— Porra, como é que sabe?
— Está usando tamancos nativos. Diria que é velho. Arrasta os pés. Escute, dá para ouvir agora sua respiração.
Momentos mais tarde o nativo apareceu em meio ao crepúsculo, e caminhou pela trilha, despreocupado. Era um velho, e trazia aos ombros um porco selvagem morto. Observaram-no passar e sumir.
— Ele nos notou — disse Peter Marlowe, preocupado.
— Notou, uma ova.
— Não, estou certo que notou. Talvez pensasse que era um guarda japonês, mas eu estava de olho nos pés dele. Sempre se pode dizer pelos pés, se você foi notado: ele deu uma paradinha no ritmo de suas passadas.
— Quem sabe era uma fenda no caminho, ou um graveto. Peter Marlowe sacudiu a cabeça.
Amigo ou inimigo?, pensou o Rei, febrilmente. Se for da aldeia, então tudo bem. A aldeia inteira sabia quando o Rei vinha, pois recebiam sua parte de Cheng San, o seu contato. Não o reconheci, o que não é de surpreender, pois muitos dos nativos estavam na pescaria noturna, das outras vezes em que fui à aldeia. O que fazer?
— Vamos esperar, depois fazer um rápido reconhecimento. Se ele for hostil, irá para a aldeia, e se apresentará ao chefe. O chefe fará um sinal para nos arrancarmos.
— Acha que pode confiar neles?
— Eu posso, Peter. — Recomeçou a andar. — Fique uns vinte metros atrás de mim.
Encontraram a aldeia facilmente. Quase facilmente demais, pensou Peter Marlowe, desconfiado. Do seu posto na elevação, examinaram-na. Alguns ma-laios acocorados fumavam numa varanda. Um porco grunhia aqui e ali. Em volta da aldeia havia coqueiros, para além deles, o mar fosforescente. Alguns barcos, velas arriadas, redes imóveis. Nenhuma sensação de perigo.
— Para mim está parecendo O.K. — murmurou Peter Marlowe.
O Rei cutucou-o, abruptamente. Na varanda da cabana do chefe, estavam o chefe e o homem que haviam visto. Os dois malaios estavam num papo animado, depois uma risada distante quebrou o silêncio, e o homem desceu a escada.
Ouviram-no gritar. Dentro de um momento, apareceu uma mulher correndo. Ela tirou o porco dos ombros dele, levou-o até o braseiro e colocou-o no espeto. Logo apareceram outros malaios, brincando, rindo, reunindo-se.
— Lá está ele! — exclamou o Rei.
Vindo da direção da praia, via-se um chinês alto. Atrás dele, um nativo amava as velas do pequeno barco pesqueiro. Reuniu-se ao chefe, trocaram breves cumprimentos, e acocoraram-se para esperar.
— Tudo bem — disse o Rei, rindo. — Lá vamos nós.
Levantou-se e, mantendo-se nas sombras, deu a volta cautelosamente. Nos fundos da choça do chefe, uma escada de mão levava à varanda, bem acima do solo. O Rei subiu por ela, Peter Marlowe logo atrás. Quase que imediatamente, ouviram o barulho da escada sendo retirada.
— Tabe — disse o Rei, sorrindo, quando Cheng San e Sutra, o chefe, entraram.
— Que bom vê-lo, tuan — disse o chefe, procurando palavras inglesas. -Quer makan... comer, sim? — O sorriso dele deixava à mostra dentes manchados de noz-de-areca.