— Espere um minuto — falou, depressa, o Major Barry, olhando ao redor nervosamente, cônscio dos olhares curiosos dos homens que passavam, e ciente da pergunta mal formulada deles: “Para que ele está conversando com o Rei?” — Eu... hã... será que podia falar com você em particular?
O Rei avaliou-o, pensativo.
— Estamos em particular, aqui. Se o senhor falar baixo.
O Major Barry estava cheio de vergonha. Mas há dias que tentava encontrar-se com o Rei. E essa oportunidade era boa demais para desperdiçar.
— Mas a choça do Chefe da Polícia Militar fica...
— E que é que os tiras têm a ver com se falar em particular? Não estou entendendo, senhor. — O Rei estava inexpressivo.
— Não há necessidade de... hã, bem, o Coronel Sellars disse que você me podia ajudar. — O Major Barry tinha apenas o coto do braço direito, e ficava coçando o coto, tocando-o, alisando-o. — Quer... cuidar de uma coisa para nós, quero dizer, para mim? — Esperou até que ninguém pudesse ouvir.
— É um isqueiro — sussurrou. — Um isqueiro Ronson. Em perfeito estado.
— Agora que fora ao âmago da questão, o Major se sentia mais tranqüilo. Mas ao mesmo tempo, sentia-se nu, dizendo tais palavras para o americano, à luz do Sol, no caminho público.
O Rei pensou por um momento.
— Quem é o dono?
— Sou eu. — O Major ergueu os olhos, espantado. — Meu Deus, não está pensando que o roubei, está? Santo Deus, jamais faria isso. Guardei-o durante todo esse tempo, mas agora, bem, agora temos que vendê-lo. Toda a unidade concordou. — Ele lambeu os lábios secos e acariciou o coto. — Por favor. Você o faria? Pode conseguir o melhor preço.
— Comerciar é contra a lei.
— Sim, mas por favor, será que... por favor? Pode confiar em mim.
O Rei virou-se de modo a ficar de costas para Grey e de cara para a cerca... para a eventualidade de Grey saber leitura labial.
— Vou mandar alguém depois do rancho — disse, em voz baixa. — A senha é: “O Tenente Albany me mandou procurá-lo.” Entendeu?
— Sim. — O Major Barry hesitou, com o coração disparando. — Quando foi que disse?
— Depois do rancho. Almoço!
— Ah, certo.
— Basta dá-lo a ele. E depois de examiná-lo, entrarei em contato com o senhor. A mesma senha. — O Rei sacudiu fora a ponta ardente do cigarro, e jogou a guimba no chão. Já ia pisar nela, quando viu a cara do Major. — Ah! Quer a guimba?
O Major Barry abaixou-se, todo feliz, e apanhou-a do chão.
— Obrigado. Muito obrigado. — Abriu sua latinha de tabaco e tirou com cuidado o papel que envolvia a guimba, e colocou os dois centímetros de tabaco junto com as folhas secas de chá, e misturou tudo. — Nada como um pouco de adoçante — disse, sorrindo. — Muito obrigado. Isso dará pelo menos três bons cigarros.
— Até mais ver, senhor — disse o Rei, batendo continência.
— Oh, bem... — O Major Barry não sabia direito como se expressar. — Não acha — disse nervosamente, falando baixo — que, bem... dá-lo a um estranho, sem mais nem menos, como vou saber que... bem, que tudo vai dar certo?
— A senha, para começo de conversa — disse o Rei, friamente. — E há mais, tenho a minha reputação. Além disso, estou confiando em sua palavra de que não é roubado. Quem sabe é melhor esquecermos tudo.
— Ah, não, por favor não me entenda mal — disse, rapidamente, o Major.
— Estava só perguntando. É que, bem, é só isso que me resta. — Tentou sorrir.
— Obrigado. Depois do almoço. Ah, quanto tempo você. acha que vai levar para, hã, livrar-se dele?
— O mais depressa que puder. Os termos de costume. Eu levo dez por cento do preço de venda — disse o Rei, vivamente.
— Claro. Obrigado, e obrigado mais uma vez pelo tabaco. — Agora que tudo fora dito, o Major Barry sentiu sair um enorme peso de cima de si. Com sorte, pensou, enquanto descia rapidamente o morro, arranjaremos uns 600 ou 700 dólares. O bastante para comprar comida durante meses, com cuidado. Não pensou uma única vez no homem que fora o dono do isqueiro, e que o entregara para ele guardar quando fora para o hospital, há meses, para nunca mais voltar. Isso pertencia ao passado. Hoje, ele era o dono do isqueiro. Era dele. Para vender, se quisesse.
O Rei sabia que Grey o observara o tempo todo. A emoção de ter feito um negócio na frente da choça da PM aumentava o seu bem-estar. Satisfeito consigo mesmo, subiu a ligeira elevação, respondendo automaticamente aos cumprimentos dos homens... oficiais e soldados, ingleses e australianos... que conhecia. Os importantes recebiam tratamento especial, os outros um aceno de cabeça amistoso. O Rei tinha consciência da inveja maldosa deles, mas ela não o incomodava nem um pouquinho. Estava acostumado; aquilo o divertia e aumentava seu valor. E agradava-lhe ser chamado de o Rei pelos homens. Tinha orgulho do que havia feito como homem... como americano. Criara um mundo pela astúcia. Examinava o seu mundo, agora, e estava bem satisfeito.
Parou diante da Choça 24, uma das australianas, e enfiou a cabeça pela janela.
— Ei, Tinker — chamou. — Quero fazer a barba e as unhas.
Tinker Bell era pequeno e magro. Tinha a pele morena, os olhos pequenos e muito castanhos e o nariz descascado. Era tosquiador de ovelhas, mas em Changi era o melhor barbeiro.
— Qual é, será que é o seu aniversário? Já fiz suas unhas anteontem.
— E daí, faça hoje de novo.
Tinker deu de ombros e pulou pela janela. O Rei sentou-se na cadeira que ficava protegida pelo toldo de folhas do telhado, relaxando, satisfeito, enquanto Tinker amarrava o pano no seu pescoço e punha-o na posição certa.
— Olhe só para isso, meu chapa — falou, e segurou um pequeno sabonete sob o nariz do Rei. — Sinta o cheiro.
— Ei — disse o Rei, abrindo um sorriso. — Esse é genuíno.
— Isso eu não sei, meu chapa! Mas é sabonete de violetas da Yardley. Um cupincha meu afanou-o num grupo de trabalho. Bem debaixo do nariz de um maldito japonês. Custou-me trinta dólares — falou, piscando o olho e dobrando o preço. — Posso guardá-lo especialmente para você, se quiser.
— Escute só: pago cinco dólares por vez, ao invés de três, enquanto ele durar — disse o Rei.
Tinker fez as contas, rapidamente. O sabonete ia durar umas oito barbas, talvez dez.
— Tenha dó, meu chapa. Assim, mal recupero meu dinheiro.
— Você foi tapeado, Tink — resmungou o Rei. — Posso comprar isso, no atacado, por quinze dólares o sabonete.
— Puta que o pariu! — exclamou Tinker, fingindo raiva. — Um cupincha meu me fazendo de otário! Isso não é direito! — Furiosamente, misturou água quente e o sabonete perfumado até fazer espuma. Depois, deu uma risada. — Você é mesmo o Rei, meu chapa.
— É — retrucou o Rei, satisfeito. Ele e Tinker eram velhos amigos.
— Pronto, meu chapa? — Tinker perguntou, segurando o pincel cheio de espuma.
— Claro. — E então o Rei viu Tex descendo a trilha. — Espere um minuto. — Ei, Tex! — chamou.
Tex olhou para aquele lado e viu o Rei e veio para junto dele.
— Sim? — Tex era um jovem desajeitado, de orelhas grandes, nariz curvo e olhos satisfeitos, e era alto, muito alto.
Sem que lhe pedissem, Tinker afastou-se, enquanto o Rei dizia a Tex para que se aproximasse.
— Quer fazer uma coisa para mim? — perguntou, suavemente.
— Claro.
O Rei pegou a carteira e tirou de lá uma nota de 10 dólares.
— Vá procurar o Coronel Brant. O baixinho com a barba enrolada sob o queixo. Entregue-lhe isso.
— Sabe onde ele deve estar?
— Junto do canto da cadeia. É o dia dele ficar de olho no Grey. Tex abriu um sorriso.
— Ouvi contar que vocês se desentenderam.
— O filho da mãe me revistou de novo.
— Que saco — disse Tex secamente, coçando a cabeleira curta.
— É. — O Rei achou graça. — E diga ao Brant para não chegar tão atrasado, na próxima vez. Mas você devia ter estado lá, Tex. Cara, aquele Brant é um grande ator. Até fez o Grey pedir desculpas. — Deu um amplo sorriso, e acrescentou mais cinco dólares. — Diga a ele que isso é pelo pedido de desculpas.