O Rei pôde apenas pegar uma palavra aqui e ali, pois seu malaio era muito ruim, e tinha que se safar com uma mistura de malaio, japonês e um jargão formado por palavras inglesas e chinesas. Escutou a risada gostosa, sabendo que era uma coisa rara. Quando esse homem ria, via-se que o riso vinha de dentro dele. Isso era uma coisa rara, sem preço.
Pensativo, o Rei entrou na cabana. Os outros homens ergueram os olhos e cumprimentaram-no amavelmente. Retribuiu os cumprimentos, sem favoritismos. Mas ele sabia, e eles sabiam.
Dino estava deitado em seu catre, semi-adormecido. Era um homenzinho bem-feito, de pele escura e cabelos escuros, prematuramente salpicados de fios grisalhos, e olhos suaves e velados. O Rei sentiu os olhos sobre si, e meneou a cabeça e viu o sorriso de Dino. Mas os olhos não estavam sorrindo.
Nos fundos da cabana, Kurt levantou os olhos da calça que tentava remendar, e cuspiu no chão. Era um homem atrofiado, com cara de mau, de dentes castanho-amarelados; parecia um rato e sempre cuspia no chão e ninguém gostava dele, pois nunca tomava banho. Perto do centro da cabana, Byron Jones III e Miller jogavam sua interminável partida de xadrez. Ambos estavam nus. Quando o navio mercante de Miller fora torpedeado, há dois anos, ele pesava 130 quilos. Media dois metros de altura. Agora, estava pesando 60 quilos, e as dobras da pele da barriga pendiam sobre seu sexo. Os olhos azuis iluminaram-se quando estendeu a mão e tomou um cavalo. Byron Jones III removeu rapidamente o’ cavalo, e agora Miller viu que sua torre estava ameaçada.
— Entrou pelo cano, Miller — disse Jones, coçando as feridas das pernas.
— Vá pro diabo!
— A Marinha de Guerra sempre pôde vencer a Marinha Mercante em qualquer campo — disse Jones, rindo.
— Assim mesmo, seus filhos da mãe, vocês ainda afundaram. Num navio de guerra!
— É — retrucou Jones, pensativo, brincando com o tapa-olho recordando a morte do seu navio, o Houston, a morte dos companheiros e a perda do olho.
O Rei atravessou toda a extensão da choça. Max ainda estava sentado ao lado de sua cama e da grande caixa negra acorrentada à cama.
— O.K., Max — disse o Rei. — Obrigado. Pode largar, agora.
— Claro. — Max tinha um rosto muito gasto. Provinha do West Side de Nova York, e aprendera bem jovem as lições da vida naquelas ruas. Tinha os olhos castanhos e irrequietos.
Automaticamente, o Rei pegou a caixa de tabaco e deu a Max um pouco do seu fumo cru.
— Puxa, obrigado — falou Max. — Ah, sim, Lee mandou que eu lhe dissesse que já lavou sua roupa. Ele vai pegar a comida, hoje... estamos no segundo turno... mas mandou que lhe dissesse.
— Obrigado. — O Rei pegou seu maço de Kooas, e um silêncio momentâneo caiu sobre a choça. Antes que o Rei pudesse pegar os fósforos, Max já estava acendendo seu isqueiro nativo de pederneira. — Obrigado, Max. — O Rei deu uma tragada profunda. Depois de uma pausa, perguntou: — Quer um Kooa?
— Jesus, claro, obrigado — retrucou Max, sem ligar para a ironia na voz do Rei. — Quer mais alguma coisa?
— Chamo se precisar.
Max atravessou a choça e foi sentar-se na sua cama, ao lado da porta. Olhos viram o cigarro, mas as bocas nada disseram. Era do Max, que fizera jus a ele. Quando fosse o dia deles tomarem conta dos pertences do Rei, então quem sabe também ganhariam um.
Dino sorriu para Max, que piscou o olho. Eles rachariam o cigarro, depois do rancho. Sempre rachavam o que podiam encontrar, ou roubar, ou ganhar. Max e Dino eram uma unidade.
E era a mesma coisa em todo o mundo de Changi. Os homens comiam e confiavam em grupos de dois, três, raramente quatro. Um homem não podia cobrir terreno suficiente, ou encontrar algo de comer e acender uma fogueira e cozinhá-lo e comê-lo... não um homem sozinho. Três era a unidade perfeita. Um para pilhar, um para tomar conta do que fora pilhado, e um de reserva. Quando o reserva não estava doente, também ele pilhava ou tomava conta. Tudo era rachado em três partes: se você ganhava um ovo, ou roubava um coco, ou encontrava uma banana num grupo de trabalho, ou arranjava qualquer coisa, tudo ia para a unidade. A lei, como toda a lei natural, era simples. Só se sobrevivia graças ao esforço mútuo. Esconder algo da unidade, era faltai, pois, se você fosse expulso de uma unidade, logo todo o mundo ficava sabendo. E era impossível sobreviver sozinho.
Mas o Rei não tinha uma unidade. Ele se bastava.
A sua cama ficava no melhor canto da cabana, sob uma janela, colocada no ângulo certo para pegar a brisa mais ligeira. A cama mais próxima ficava a dois metros e meio de distância. A cama do Rei era boa. De aço. As molas eram firmes e o colchão cheio de paina. A cama tinha duas cobertas, e a pureza dos lençóis aparecia por baixo da coberta de cima, perto do travesseiro imaculado. Acima da cama, bem esticado em estacas, havia um mosquiteiro. Impecável.
O Rei também tinha uma mesa e duas poltronas, e um tapete de cada lado da cama. Numa prateleira, atrás da cama, ficava seu equipamento de barbear... navalha, pincel, sabão, lâminas — e ao lado dele, seus pratos e xícaras e fogareiro elétrico feito em casa e utensílios de cozinhar e comer. Na parede de canto estavam penduradas suas roupas, quatro camisas e quatro calças compridas e quatro calças curtas. Havia seis pares de meias e seis cuecas numa prateleira. Sob a cama ficavam dois pares de sapatos, chinelos de banho e um par de lustrosos tamancos indianos.
O Rei sentou-se numa das poltronas e certificou-se de que tudo ainda estivesse no lugar. Notou que o fio de cabelo que colocara delicadamente sobre a navalha não mais se achava lá. Filhos da mãe duma figa, pensou, por que devo arriscar-me a pegar as mazelas deles. Mas ficou calado, tomando nota mentalmente para trancá-la, no futuro.
— Oi — falou Tex. — Está ocupado?
“Ocupado” era outra senha. Queria dizer: “Está pronto para receber a encomenda?”
O Rei sorriu e fez que sim, e Tex passou-lhe com cuidado o isqueiro Ronson.
— Obrigado — disse o Rei. — Quer a minha sopa, hoje?
— Se quero — disse Tex, afastando-se.
O Rei examinou calmamente o isqueiro. Como o Major dissera, era quase novo. Não estava arranhado. Funcionava sem falhar. E estava muito limpo. Desatarrachou o parafuso da pederneira e examinou-a. Era uma pederneira nativa barata, e estava quase no fim; então ele abriu a caixa de charutos da prateleira e pegou o recipiente de pederneiras Ronson, e colocou uma pederneira nova no isqueiro. Apertou a alavanca, e ele funcionou. Um ajuste cuidadoso do pavio, e ficou satisfeito. O isqueiro não era fajuto, e renderia de 800 a 900 dólares, na certa.
De onde estava sentado, podia ver o rapaz e o malaio. Ainda estavam no maior blá-blá-blá.
— Max — chamou, suavemente.
Max atravessou rapidamente a cabana.
— Sim?
— Está vendo aquele cara? — falou o Rei, indicando os dois do lado de fora da janela.
— Qual? O nativo?
— Não, o outro. Vá buscá-lo para mim, está bem? Max saltou pela janela e cruzou a trilha.
— Ei, cara — falou abruptamente para o rapaz. — O Rei quer vê-lo. — E indicou a choça com o polegar. — E depressinha.
O homem ficou olhando abobado para Max, depois acompanhou a direção do polegar e viu a choça americana.
— Eu? — perguntou incrédulo, olhando de novo para Max.
— É, você — disse Max, impaciente.
— Para quê?
— E como vou saber, ora!
O homem olhou para Max, endurecendo a fisionomia. Pensou por um momento, depois virou-se para Suliman, o malaio.
— Nantilah — disse.
— Bik, tuan — retrucou Suliman, preparando-se para esperar. A seguir, acrescentou, em malaio: — Cuidai-vos, tuan. E ide com Deus.
— Não temais, meu amigo... mas agradeço a vossa preocupação — respondeu o homem, sorrindo. Levantou-se e acompanhou Max para dentro da choça.
— Queria ver-me? — indagou, acercando-se do Rei.
— Oi — disse o Rei, sorridente. Notou que os olhos do homem eram reservados. Aquilo o deixou satisfeito, pois era coisa rara. — Sente-se. — Fez um gesto de cabeça para Max, que foi embora. Sem que fosse preciso pedir, os outros homens que estavam por perto afastaram-se, para que o Rei pudesse falar em particular. — Vamos, sente-se — disse o Rei, cordialmente.