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O Rei levantou os olhos vivamente das cartas, quando Max entrou apressadamente na choça.

— Encrenca — disse Max, a voz baixa e tensa. — Grey acaba de sair do hospital, dirigindo-se para cá.

— Mande alguém segui-lo, Max. Melhor mandar o Dino.

— Certo. — Max saiu, às pressas.

— O que acha disso, Peter?

— Se Grey saiu do hospital, deve saber que há algo no ar.

— E sabe, pode crer.

— O quê?

— Claro. Há um alcagüete aqui na choça.

— Meu Deus. Tem certeza?

— Tenho. E sei quem é.

O Rei botou um quatro preto em cima de um cinco vermelho e o cinco vermelho em cima de um seis preto, e virou mais um ás.

— Quem é?

— Não lhe vou dizer, Peter. — O Rei deu um sorriso duro. — É melhor que você não saiba. Mas o Grey tem um homem aqui.

— O que vai fazer a respeito?

— Nada. Por enquanto. Mais tarde, quem sabe eu o dê para os ratos comerem. — A seguir, o Rei sorriu e mudou de idéia. — A criação de ratos foi uma idéia e tanto, não foi?

Peter Marlowe ficou imaginando o que faria se soubesse quem era. Sabia que Yoshima também tinha um dedo-duro no campo, o cara que tinha denunciado o pobre Daven, o cara que ainda não tinha sido pegado, que ainda era desconhecido... o que ainda estava procurando o rádio nos cantis. Achou o Rei sensato por esconder o nome do cara, assim não haveria deslizes, não ficou ressentido pelo Rei nâ”o lhe dizer quem era. Mas, mesmo assim, examinou as possibilidades.

— Acha mesmo — perguntou — que a carne vai ser... perfeita?

— E eu lá sei, porra — replicou o Rei. — A idéia toda é repugnante, quando se pára para pensar. Mas... e é um grande mas... negócio é negócio. E com aquele toque derradeiro, foi uma idéia genial!

Peter Marlowe sorriu e esqueceu a dor no braço.

— Não se esqueça. A primeira perna é minha.

— Alguém que conheço?

— Não.

— Que é isso, não vai contar para o seu amigão do peito? — perguntou o Rei, com um sorriso.

— Conto depois que a carne estiver entregue.

— Afinal, pensando bem, carne é carne e comida é comida. Veja só o cachorro, por exemplo.

— Vi o Hawkins há uns dois dias.

— E o que houve?

— Nada. Eu não tinha vontade de dizer nada, e ele não queria falar no assunto.

— Aquele cara é muito legal. Acabou, está acabado. — A seguir, o Rei disse, inquieto, jogando as cartas sobre a mesa. — Gostaria que o Shagata chegasse logo.

Tex espiou pela janela.

— Ei!

— Sim?

— Timsen mandou avisar que o dono está entrando em pânico. Quanto tempo você ainda vai demorar?

— Vou falar com ele. — O Rei saiu pela janela, murmurando para Peter Marlowe. — Fique aqui de plantão, Peter. Não vou muito longe.

— Está bem — respondeu Peter Marlowe. Apanhou as cartas e começou a embaralhá-las, estremecendo com as ondas de dor.

O Rei se manteve nas sombras, sentindo muitos pares de olhos sobre si. Alguns eram olhos dos guardas, o resto se constituía de olhos estranhos, hostis. Quando encontrou Timsen, o australiano estava uma pilha.

— Como é, meu camarada. Não dá para ficar com ele aqui para sempre.

— Onde está ele?

— Quando seu contato chegar, eu o apresento. O trato é esse. Ele não está longe.

— Melhor ficar de olho nele. Não vai querer que nada lhe aconteça, não é?

— Cuide de sua parte, eu cuido da minha. Ele está bem vigiado. — Timsen deu uma tragada no seu Kooa, depois passou-o ao Rei, que fez o mesmo.

— Obrigado. — O Rei fez sinal para o muro da cadeia, lado leste. — Está sabendo deles?

— Claro. — O australiano riu. — Tem mais: Grey vem vindo para cá, nesse instante. A área toda está fervendo de tiras e mateiros. Sei que há um bando de australianos, e ouvi dizer que mais um outro está sabendo da transação. Mas os meus cupinchas estão com a área toda controlada. Logo que recebermos o dinheiro, você recebe o diamante.

— Vamos dar ao guarda mais dez minutos. Se não chegar até lá, faremos novo plano. Ou melhor, mesmo plano, detalhes diferentes.

— Certo, meu chapa. Vejo-o amanhã, depois da bóia.

— Vamos torcer para que seja ainda hoje.

Mas não foi. Esperaram, e Shagata não apareceu; portanto, o Rei cancelou a operação.

No dia seguinte, Peter Marlowe juntou-se ao enxame de homens que esperava diante do hospital. Era depois do almoço, e o Sol atormentava o ar, a terra e as criaturas da terra. Até mesmo as moscas pareciam sonâmbulas. Achou uma sombrinha, agachou-se pesadamente na poeira e começou a esperar. Seu braço cada vez latejava mais.

Já passava do entardecer, quando chegou a vez dele.

O Dr. Kennedy lançou um breve cumprimento de cabeça para Peter Marlowe, depois fez-lhe sinal para que se sentasse.

— Como está passando hoje? — perguntou, distraído.

— Mais ou menos, obrigado.

O Dr. Kennedy inclinou-se e tocou na atadura. Peter Marlowe deu um berro.

— Mas que diabo, o que é isso? — exclamou o Dr. Kennedy, zangado. — Mal lhe toquei, pelo amor de Deus!

— Não sei. O mais leve toque dói pra burro.

O Dr. Kennedy enfiou um termômetro na boca de Peter Marlowe, depois tomou-lhe o pulso. Anormal, o pulso estava a 90. Isso era mau. A temperatura estava normal, o que também não era bom. Levantou o braço e cheirou a atadura. Tinha um cheiro nitidamente murídeo. Mau.

— Muito bem — falou — vou tirar a atadura. Tome. — Deu a Peter Marlowe um pedacinho de borracha de pneu, que tirou do fluido esterilizador com um par de pinças cirúrgicas. — Morda isto. Infelizmente, vou ter que machucá-lo.

Esperou até Peter Marlowe ter posto a borracha entre os dentes; depois, com o máximo de suavidade possível, começou a tirar a atadura. Mas estava grudada à ferida, agora era parte da ferida, e a única coisa a fazer era puxar, mas ele não era mais tão hábil quanto fora e devia ser.

Peter Marlowe já sentira muita dor. E quando se conhece uma coisa intimamente, conhece-se suas limitações, sua cor e suas nuanças. Com prática... e coragem... a gente pode deixar-se entrar na dor, e então ela não fica forte, é apenas uma alteração, controlável. Às vezes, chega a ser boa. Mas esta dor ia além de qualquer agonia.

— Ó, meu Deus — choramingou Peter Marlowe, com a borracha entre os dentes, as lágrimas correndo, a respiração aos arrancos.

— Já acabou — disse o Dr. Kennedy, sabendo que não tinha acabado. Mas nada mais havia que pudesse fazer, nada. Não aqui. Este paciente devia tomar morfina, qualquer idiota podia ver, mas não tinha como dar-lhe uma injeção. — Pronto, vamos dar uma olhada.

Examinou atentamente a ferida aberta. Estava inchada e túmida, e apresentava uma cor amarelada com pedaços arroxeados. Viscosa.

— Hum — falou, especulativamente, recostando-se e formando um triângulo com os dedos, tirando os olhos da ferida e fixando-os no triângulo. — Bem — disse, finalmente — temos três alternativas. Levantou-se e começou a andar de um lado para o outro, ombros curvados, depois disse monotonamente, como se estivesse fazendo uma conferência: — A ferida agora adquiriu outros atributos. Miosite clostridial. Ou, para falar mais simplesmente, a ferida está gangrenosa. Está com gangrena gasosa. Posso abrir a ferida e remover os tecidos infeccionados, mas não creio que adiante, pois a infecção é profunda. Portanto, teria que remover parte dos músculos do antebraço, o que tornaria a mão inútil. A melhor solução seria amputar.

— O quê!

— Sem dúvida. — O Dr. Kennedy não falava com um doente, estava apenas fazendo uma conferência, na sala de aula estéril de sua mente. — Proponho uma amputação de guilhotina alta. Imediatamente. Então, quem sabe possamos salvar a junta do cotovelo...

Peter Marlowe o interrompeu, cheio de desespero.

— É só uma ferida superficial. Não há nada de errado com ela, é só uma ferida superficial! — O medo na voz dele trouxe o Dr. Kennedy de volta à realidade, e o médico olhou por um momento para o rosto sem cor.