— A ferida é muita funda. E você está com toxemia. Escute, meu rapaz, a coisa é muito simples. Se tivesse soro, poderia dá-lo a você, mas não tenho Se tivesse sulfa, poderia colocá-la na ferida, mas não tenho. A única coisa que posso fazer é amputar...
— Você deve estar maluco! — gritou Peter Marlowe para o médico. -Falando em amputar meu braço, quando só o que tenho é um ferimento superficial.
A mão do médico se lançou para a frente e Peter Marlowe uivou de dor quando os dedos apertaram seu braço, bem acima da ferida.
— Está vendo só! Não é apenas um ferimento superficial. Você tem toxemia, e ela vai espalhar-se por seu braço e penetrar no seu organismo. Se quiser viver, teremos que amputá-lo. Pelo menos salvará sua vida!
— Você não vai cortar fora meu braço!
— Faça como quiser. É isso ou a... — O médico se deteve e se sentou, exausto. — Suponho que seja um direito seu, se prefere morrer. Não posso dizer que o culpo. Mas meu Deus, rapaz, não está entendendo o que lhe estou dizendo? Você vai morrer, se não amputarmos.
— Você não vai tocar em mim! — Os lábios de Peter Marlowe estavam repuxados, deixando os dentes à mostra, e sabia que mataria o médico, se este tocasse nele de novo. — Você está maluco! — berrou. — É apenas um ferimento superficial.
— Está certo. Não precisa acreditar em mim. Vamos consultar outro médico.
Kennedy chamou outro médico e ele confirmou o diagnóstico, e Peter Marlowe entendeu que o pesadelo não era um sonho. Tinha mesmo gangrena. Ó, meu Deus! O medo deixou-o, sem forças. Escutou, aterrorizado, enquanto lhe explicavam que a gangrena era causada por bacilos multiplicando-se por todo o braço, gerando a morte, naquele momento. O seu braço era uma coisa cancerosa, tinha que ser cortado fora. Cortado até o cotovelo. Tinha que ser cortado logo, caso contrário o braço inteiro teria que ser removido. Mas não devia preocupar-se. Não ia doer. Agora tinham éter de sobra... não era como antigamente.
E então Peter Marlowe se viu fora do hospital, com o braço ainda no lugar... com os bacilos se reproduzindo... envolto numa atadura limpa, descendo o morro tropegamente, pois dissera aos médicos que precisava pensar no assunto... Pensar no quê? O que havia para pensar? Quando deu por si, estava diante da choça dos americanos, e viu que o Rei estava sozinho na choça, preparado para a chegada de Shagata, se é que este viria ainda esta noite.
— Jesus, mas que cara é essa, Peter?
O Rei escutou a história, seu pesar aumentando à medida que Peter falava.
— Santo Deus! — Ficou olhando para o braço, apoiado na mesa.
— Juro por Deus que prefiro morrer do que viver aleijado. Juro por Deus! — Peter ergueu os olhos para o Rei, patético, sem defesa, e seus olhos gritavam: Ajude-me, ajude-me, pelo amor de Deus, ajude-me!
E o Rei pensou: Puta que o pariu, ó que eu faria se fosse o Peter e aquele fosse o meu braço, e quanto ao diamante... preciso do Peter lá para me ajudar, preciso...
— Ei — sussurrou Max, do vão da porta. — Shagata vem vindo.
— Certo, Max. E quanto a Grey?
— Está junto do muro, sob vigilância. Timsen está por dentro, os australianos dele estão vigiando.
— Ótimo, dê o fora e se apronte. Avise aos outros.
— Certo. — Max se afastou, apressadamente.
— Vamos, Peter, temos que estar prontos — disse o Rei. Mas Peter Marlowe estava em estado de choque. Inútil. — Peter! — O Rei sacudiu-o, brutalmente. — Levante-se, acorde! — esbravejou. — Vamos. Você tem que ajudar. Levante-se! — Botou Peter Marlowe de pé, com violência.
— Porra, mas o quê...
— Shagata vem vindo. Temos que fechar o negócio.
— O seu negócio que vá à merda! — berrou Peter Marlowe, no limiar da loucura. — O diamante que vá à merda! Vã”o cortar meu braço fora.
— Não vão, não!
— Tem porradas de razão, não vão mesmo. Prefiro morrer primeiro...
O Rei deu-lhe um tapa com o dorso da mão, depois uma violenta bofetada. Peter Marlowe parou abruptamente de esbravejar, e sacudiu a cabeça.
— Porra, mas o quê...
— Shagata vem vindo. Temos que nos aprontar.
— Vem vindo? — perguntou Peter Marlowe, aparvalhado, o rosto ardendo das bofetadas.
— É. — O Rei notou que os olhos de Peter Marlowe se achavam novamente reservados, e teve certeza de que o inglês estava de volta ao mundo real. — Puxa vida — falou, tonto de alívio — tive que fazer alguma coisa, Peter, você estava gritando como doido.
— Estava? Desculpe, que idiotice.
— Está-se sentindo bem, agora? Vai ficar controlado?
— Agora, estou bem.
Peter Marlowe saltou pela janela, atrás do Rei. E ficou feliz pela fisgada de dor que subiu por seu braço, quando os pés tocaram o solo. Entrou em pânico, seu idiota, falou consigo mesmo. Marlowe, seu idiota, entrou em pânico como uma criança. Então vai ter que perder o braço. Tem sorte de não ser a perna, aí sim é que estaria aleijado de verdade. O que é um braço? Nada. Pode arranjar um braço artificial. Com um gancho. É isso aí. Nada de errado com um braço postiço. Nada. Pode até ser uma boa idéia. Claro.
— Tabe — cumprimentou Shagata, enquanto se enfiava sob o toldo de lona.
— Tabe — disseram o Rei e Peter Marlowe.
Shagata estava muito nervoso. Quanto mais pensava na transação, menos gostava dela. Dinheiro demais, risco demais. E farejava o ar, como um cão perdigueiro.
— Sinto cheiro de perigo — falou.
— Ele disse: “Sinto cheiro de perigo.”
— Diga-lhe para não se preocupar, Peter. Estou ciente do perigo e está tudo sob controle. Mas, e quanto a Cheng San?
— Já vos digo — Shagata murmurou, apressadamente — que os deuses sorriem para vós, para mim e para nosso amigo. Aquele é uma raposa, pois a polícia peçonhenta soltou-o da armadilha. — O suor corria por seu rosto, ensopando-o. — Estou com o dinheiro.
O estômago do Rei deu uma cambalhota.
— Diga a ele que é melhor a gente cortar o papo furado e agir. Volto já com a mercadoria.
O Rei achou Timsen, nas sombras.
— Pronto?
— Pronto. — Timsen soltou um assobio na escuridão, que foi prontamente respondido. — Ande depressa, meu chapa. Não posso garantir sua segurança por muito tempo.
— O.K. — O Rei esperou, e um cabo australiano magro saiu da escuridão.
— Oi, meu camarada. Chamo-me Townsend. Bill Townsend.
— Vamos.
O Rei voltou depressa para baixo do toldo, enquanto Timsen ficava de vigia, e seus australianos espalhavam-se em leque pela rota de fuga.
Junto à esquina da cadeia, Grey também esperava, impaciente. Dino acabara de murmurar ao seu ouvido que Shagata tinha chegado, mas Grey sabia que as conversações preliminares levariam tempo. Daí a pouco, poderia agir.
A falange de Smedly-Taylor também estava de prontidão, esperando que a transferência se realizasse. Depois que Grey começasse a agir, eles fariam o mesmo.
O Rei estava sob o toldo, com um Townsend nervoso ao lado.
— Mostre a ele o diamante — ordenou o Rei.
Townsend abriu a camisa andrajosa e tirou de dentro um cordão, e na ponta do cordão estava o anel de diamantes. Townsend tremia ao mostrá-lo a Shagata, que iluminou o anel com a lanterna portátil. Shagata examinou-o cuidadosamente, uma gota de luz-gelada na ponta de um pedaço de barbante. A seguir, segurou-a e riscou com ele a superfície de vidro da lanterna. Guinchando, o diamante deixou sua marca. Shagata balançou a cabeça, suando.
— Muito bem. — Virou-se para Peter Marlowe. — É realmente um diamante — falou, e apanhou um calibrador e mediu cuidadosamente a extensão da pedra. Balançou a cabeça, mais uma vez. — Tem realmente quatro quilates.
O Rei fez um aceno de cabeça.
— Muito bem. Peter, espere com Townsend.