— Eu... eu... — A vontade de Townsend era gritar: “O diamante, eu estava com o diamante”, e queria a ajuda do Coronel para apanhar os sacanas que o haviam roubado dele. Mas não podia falar do diamante, porque o Coronel ia querer saber onde o arranjara, e teria que contar que fora com o Gurble. E então haveria perguntas sobre Gurble, onde ele, Gurble, o arranjara? O suicídio? Talvez, então, dissessem que não fora suicídio, fora assassinato, mas não fora, pelo menos ele, Townsend, achava que não, mas quem sabe alguém dera cabo do Gurble por causa do diamante. Mas naquela determinada noite, Gurble não estava no beliche, e eu notara o contorno do anel de diamante no colchão, e o tirara de lá e sumira dentro da noite, e quem poderia provar alguma coisa... e aconteceu de o Gurble se suicidar naquela mesma noite, então não fez mal. Exceto que, quem sabe, fui eu que assassinei Gurble, assassinei-o ao roubar o anel, quem sabe aquela foi a gota d’água para Gurble, ser posto para fora da unidade por roubar rações, e depois ter o seu diamante roubado. Quem sabe foi isso que o deixou maluco, o coitado do filho da mãe, e fez com que saltasse para dentro da fossa! Mas roubar rações não faz sentido, quando um cara tem um diamante para vender. Não faz sentido, mesmo. Exceto que talvez tenha sido eu a causa da morte de Gurble, e me amaldiçôo, vezes sem conta por ter roubado o diamante. Desde que virei ladrão não tenho paz, nenhuma paz. E agora, estou feliz, feliz por não o ter mais, que o houvessem roubado de mim.
— Não sei — soluçava Townsend. Larkin viu que de nada adiantava, e deixou Townsend com sua dor.
— Ah, desculpe, Padre — falou Larkin, quase dando um encontrão no Padre Donovan, enquanto descia os degraus da choça.
— Alô, velho amigo. — O Padre Donovan parecia um fantasma, incrivelmente emagrecido, os olhos fundos e estranhamente tranqüilos. — Como vai? E Mac? E o jovem Peter?
— Bem, obrigado. — Larkin fez um sinal de cabeça na direção de Townsend. — O que sabe sobre aquilo?
Donovan olhou para Townsend, e replicou, suavemente:
— Vejo um homem sofrendo.
— Desculpe, não deveria ter perguntado. — Larkin pensou por um momento, depois sorriu. — Quer jogar uma partidinha de bridge? Logo mais, depois do jantar?
— Quero, sim, obrigado.
O Padre Donovan ficou olhando Larkin afastar-se, depois foi para junto da cama de Townsend. O rapaz não era católico. Mas o Padre Donovan se dava a todos, pois sabia que todos os homens são filhos de Deus. Mas será que são, todos eles?, perguntou-se. Será que filhos de Deus seriam capazes de fazer tais coisas?
Ao meio-dia, o vento e a chuva vieram juntos. Não demorou para que tudo e todos estivessem ensopados. Depois, a chuva parou, e o vento continuou. Pedaços de telhado eram arrancados e arremessados pelo campo, misturando-se a folhas de palmeira soltas, trapos e chapéus de cule. Em seguida, o vento parou, e o campo voltou ao normal, com o Sol, o calor e as moscas. A água correu nos canais de escoamento por meia hora, depois começou a entranhar no solo e ficar estagnada. Mais moscas apareceram.
Peter Marlowe subia o morro, apaticamente. Seus pés e pernas estavam manchados de lama, pois deixara a tempestade rodeá-lo, esperando que o vento e a chuva pudessem afastar aquela mágoa taciturna. Mas eles não o haviam tocado. Ficou parado diante da janela do Rei, espiando para dentro.
— Como se sente, Peter, amigão? — perguntou o Rei, levantando-se da cama e pegando um maço de Kooas.
— Péssimo. — Peter Marlowe sentou-se no banco, protegido pelo toldo, nauseado de dor. — Meu braço está-me matando. — Soltou uma risada amarga. — É uma piada!
O Rei saltou pela janela e forçou um sorriso.
— Deixe pra lá...
— Porra, como vou deixar pra lá? — Imediatamente, Peter Marlowe arrependeu-se de sua explosão. — Desculpe. Estou nervoso. Quase nem sei o que estou dizendo.
— Tome um cigarro. — O Rei acendeu-o para ele. È, o Rei falou consigo mesmo, você está numa enrascada. O inglês aprende depressa, muito depressa. Pelo menos, é o que acho. Vejamos. — Vamos completar a transação amanhã. Você pode ir apanhar o dinheiro esta noite, eu dou cobertura.
Mas Peter Marlowe não o ouvia. O braço queimava a fogo uma palavra no seu cérebro. Amputar! E podia ouvir o barulho do serrote, e senti-lo cortar, formando pó-de-ossos, o seu pó-de-ossos. Estremeceu violentamente.
— E quanto a... isso? — resmungou, levantando os olhos fitos no braço. — Pode mesmo fazer alguma coisa?
O Rei meneou a cabeça, e falou consigo mesmo: Está vendo, eu não disse. Somente Pete sabe onde está o dinheiro, mas Pete não vai buscar o dinheiro sem que você arranje sua cura. Sem cura, nada de grana. Sem grana, nada de venda. Sem venda, nada de tutu grosso. Portanto, soltou um suspiro e disse para si mesmo: É, você é um cara vivo, conhece bem os homens. Mas quando acerta em cheio, como fez ontem à noite, não faz mau negócio. Se o Peter não se tivesse arriscado, estaríamos os dois na cadeia, sem dinheiro, sem nada. E Pete trouxera-lhes sorte. A transação estava melhor do que nunca. E, tirando tudo isso, o Pete é um cara legal. Um bom sujeito. E afinal que diabo, quem está a fim de perder um braço. Pete tem direito de pressionar. Ainda bem que aprendeu.
— Deixe com o Tio Sam!
— Quem?
— O Tio Sam? — O Rei olhou para ele, estupefato. — O símbolo americano. Sabe — disse, exasperado — como o John Buli.
— Ah, desculpe, é que hoje... estou...
Peter Marlowe foi tomado por uma onda de náusea.
— Volte para seu beliche e relaxe. Cuido de tudo.
Peter Marlowe levantou-se, tropegamente. Queria sorrir, agradecer Ao Rei, apertar sua mão e abençoá-lo, mas lembrava-se da palavra, e sentia apenas o serrote; portanto, fez um leve aceno de cabeça e saiu da choça.
Pela madrugada, pensou o Rei, amargamente. Ele acha que eu o deixaria na mão, que não faria nada a não ser que ele me apertasse. Pela madrugada, Peter, eu ajudaria. Claro. Mesmo que você não estivesse com a faca e o queijo na mão. Porra, você é meu amigo.
— Ei, Max.
— Sim?
— Traga o Timsen até aqui, e rapidinho.
— Certo — disse Max, retirando-se.
O Rei destrancou a caixa preta e tirou de lá três ovos.
— Tex? Quer preparar um ovo para você? Junto com estes dois?
— Claro que não — falou Tex, abrindo um sorriso, e pegando os ovos. -Ei, dei uma olhada na Eva, hoje. Juro por Deus que já está mais gorda.
— Impossível. Ela cruzou ontem.
— Daqui a 20 dias vamos todos ser papais de novo. — Disse Tex, dando uns passinhos de dança. Depois, pegou o óleo e foi lá para fora, cozinhar.
O Rei ficou recostado no seu catre, coçando pensativo uma picada de mosquito, e olhando os lagartos nas vigas caçando e fornicando. Fechou os olhos e começou a cochilar, satisfeito. Ainda era meio-dia, e já tinha feito o trabalho duro de um dia. Que diabo, tudo fora acertado antes das seis horas da manhã!
Riu baixinho, consigo mesmo, ao recordar. Sim, senhor, vale a pena ter uma boa reputação, e vale a pena fazer propaganda...
Acontecera pouco antes do alvorecer. Dormia suavemente, quando uma voz baixa e cautelosa interrompera-lhe os sonhos.
Acordou imediatamente, olhou pela janela e viu um homenzinho com cara de fuinha fitando-o nas sombras vaporosas da madrugada. Um homem que nunca vira antes.
— Sim?
— Tenho uma coisa que você quer comprar. — A voz do homem era inexpressiva e rouca.
— Quem é você?
Como resposta, o homenzinho abrira o punho sujo, com as unhas quebradas e “de luto”. O anel de diamante estava na palma de sua mão.
— O preço é dez mil. Para uma venda rápida — acrescentara, sarcástico. Depois, os dedos fecharam-se bruscamente, quando o Rei se moveu para pegar o anel, e o punho se afastou. — Esta noite. — O homem dera um sorriso sem dentes. — É o legítimo, não tenha medo.
— Você é o dono?
— Está na minha mão, não está?