— Passo — disse Larkin, irritado. Lamentava agora ter sugerido o jogo. Não tinha graça nenhuma. Nenhuma.
— Três espadas — disse o Padre Donovan.
— Passo.
— Passo — falou Peter Marlowe, e todos olharam para ele, surpresos.
— Devia ter mais fé... — disse o Padre Donovan, com um sorriso.
— Estou cansado de fé. — As palavras grosseiras e zangadas foram repentinas.
— Desculpe, Peter, só estava...
— Escute aqui, Peter — interrompeu Larkin, vivamente. — Só porque está de mau humor...
— Tenho direito à minha opinião, e acho que foi uma piada de mau gosto — explodiu Peter Marlowe. A seguir, voltou-se violentamente para Donovan. — Só porque você banca o mártir, dando sua comida e dormindo no alojamento dos homens, será que isso lhe dá o direito de ser a autoridade? A fé é uma baboseira! Vale o que? Nada! A fé é para as crianças... e Deus também. Que diabo pode Ele fazer? Fazer de verdade? Hem? Hem?
Mac e Larkin fitavam Peter Marlowe sem o reconhecer.
— Ele pode curar — falou o Padre Donovan, que sabia da gangrena. Sabia de muitas coisas que preferia não saber.
— Merda! — berrou, alucinado, Peter Marlowe, jogando as cartas sobre a mesa. — Tudo isso é pura merda, e você sabe. E mais outra coisa, já que tocamos no assunto. Deus! Sabe, eu acho que Deus é um maníaco, um maníaco sádico e cruel, um sanguessuga...
— Você está doido varrido, Peter? — explodiu Larkin.
— Não, não estou. Olhe só para Deus — esbravejava Peter Marlowe, o rosto contorcido. — Deus é só maldade... se é que realmente é Deus. Vejam quanto derramamento de sangue foi cometido em Seu nome. — Chegou o rosto bem junto do de Donovan. — A Inquisição? Lembra? Todos os milhares que foram queimados e torturados em nome de Deus? Pelos sádicos católicos? E nem vamos pensar nos astecas e incas e nos pobres milhões de índios desgraçados. E os protestantes queimando e matando os católicos; e os católicos, os judeus e os muçulmanos; e os judeus, mais judeus... e os mórmons e os quakers e todo o resto da podridão. Matar, torturar, queimar! Basta ser feito em nome de Deus, que está certo. Mas quanta hipocrisia! Não me fale em fé! Não é nada!
— E no entanto, você tem fé no Rei — disse o Padre Donovan, suavemente.
— Suponho que vá dizer que ele é um instrumento de Deus?
— Pode ser que seja. Não sei.
— Preciso contar isso a ele. — Peter Marlowe ria, histericamente. — Vai arrebentar de rir.
— Escute aqui, Marlowe! — Larkin se pôs de pé, trêmulo de raiva. — Peça desculpas ou se retire!
— Não se preocupe, Coronel — retrucou Peter Marlowe com violência. -Vou-me embora. — Levantou-se e olhou ferozmente para eles, odiando-os, odiando-se. — Escute, Padre. Você é uma piada. Suas saias são uma piada. Vocês todos são uma piada infame, vocês e Deus. Não servem a Deus, porque Deus é o diabo. São servos do diabo. — E então apanhou algumas cartas da mesa, jogou-as na cara do Padre Donovan, e saiu intempestivamente para dentro da escuridão.
— Em nome de Deus, o que deu no Peter? — disse Mac, quebrando o silêncio horrorizado.
— Em nome de Deus — disse o Padre Donovan, cheio de compaixão. — Peter está com gangrena. Precisa amputar o braço, caso contrário morrerá. Dava para se ver as listras escarlates claramente, acima do cotovelo.
— O quê? — Larkin e Mac se entreolharam, estarrecidos. E então, simultaneamente, os dois se levantaram e se apressaram a sair. Mas o Padre Donovan os chamou de volta:
— Esperem, não há nada que possam fazer.
— Porra, mas tem que haver alguma coisa. — Larkin ficou de pé, à porta. — O pobre rapaz... e pensei... pobre rapaz...
— Não há nada a fazer, exceto esperar. Exceto ter fé, e orar. Talvez o Rei queira ajudar, possa ajudar. — A seguir, o Padre Donovan acrescentou, com voz cansada. — O Rei é o único homem que pode.
Peter Marlowe entrou aos tropeções na choça americana.
— Vou apanhar o dinheiro agora — murmurou para o Rei.
— Está maluco? Tem gente demais andando por aí.
— Para o diabo essa gente — disse Peter Marlowe, iradamente. — Quer o dinheiro, ou não?
— Sente-se. Sente-se! — O Rei forçou Peter Marlowe a sentar-se, deu-lhe um cigarro, insistiu para que tomasse café e pensou, Jesus, quanto tenho que fazer em troca de um tutuzinho. Pacientemente, disse a Peter Marlowe que se controlasse, que tudo ia ficar bem, pois a cura já fora providenciada, e uma hora depois Peter Marlowe já estava mais calmo, e pelo menos coerente. Mas o Rei percebeu que não o estava alcançando, que embora ele sacudisse a cabeça de vez em quando, Peter Marlowe estava fora do seu alcance, e se estava fora do alcance dele, o Rei, estava fora do alcance de qualquer um.
— Já está na hora? — perguntou Peter Marlowe, quase cego de dor, sabendo que, se não fosse agora, nunca mais iria.
O Rei sabia que era cedo demais para ser seguro, mas também sabia que não podia mais prendê-lo na choça. Assim, mandou guardas em todas as direções. Toda a área ficou coberta. Max vigiava Grey, que estava no seu beliche. Byron Jones III vigiava Timsen. E este achava-se no norte, junto ao portão, esperando pelos medicamentos, e os rapazes do Timsen, outra fonte de perigo, ainda vasculhavam a área, desesperadamente, em busca do atacante de Townsend.
O Rei e Tex ficaram vendo Peter Marlowe, andando feito um zumbi, sair da choça, cruzar a trilha e chegar à vala de escoamento. Oscilou na beirada, depois passou para o outro lado e começou a cambalear em direção à cerca.
— Jesus! — exclamou Tex — não posso olhar!
— Nem eu — falou o Rei.
Peter Marlowe tentava focalizar os olhos na cerca, em meio à dor e ao delírio que o subjugavam. Rezava por uma bala. Não agüentava mais a agonia. Mas não veio bala alguma, e então ele continuou a andar, sombriamente ereto, depois baqueou diante da cerca. Agarrou-se a um dos arames para firmar-se por um momento. Abaixou-se para passar pela cerca, e deu um pequeno gemido ao cair nas profundas do inferno.
O Rei e Tex correram para a cerca, seguraram-no e arrastaram-no para longe da cerca.
— O que deu nele? — perguntou alguém, de dentro da escuridão.
— Acho que pirou, depois de tanto tempo preso — explicou o Rei. — Vamos, Tex, vamos levá-lo para a cabana.
Levaram-no para a cabana, deitaram-no na cama do Rei. Depois, Tex saiu às pressas para chamar os vigias de volta, e a choça retornou ao normal. Só um vigia lá fora.
Peter Marlowe jazia na cama, gemendo e resmungando, em delírio. Depois de algum tempo, voltou a si.
— Ó, meu Deus — soluçou, tentando sair da cama, mas seu corpo o derrotou.
— Tome — disse o Rei, ansioso, dando-lhe quatro aspirinas. — Calma, vai ficar bom. — A mão do Rei tremia enquanto o ajudava a tomar um pouco d’água. Puta que o pariu, pensou com amargura, se Timsen não trouxer os remédios esta noite, o Peter não escapa, e se não escapar, como é que vou botar a mão no meu dinheiro? Puta que o pariu!
Quando Timsen finalmente chegou, o Rei estava um caco.
— Oi, meu camarada. — Timsen também estava nervoso. Tivera que dar cobertura ao seu melhor camarada junto ao portão principal, enquanto o homem passava pela cerca e entrava no alojamento do médico japonês, que ficava a uns 50 metros de distância, e não muito longe da casa de Yoshima, e perto demais da casa da guarda para esculhambar com os nervos de um homem. Mas o australiano se esgueirara para dentro e se esgueirara para fora, e conquanto Timsen soubesse que não há ladrão no mundo igual a um soldado australiano quando está a fim de uma mercadoria, mesmo assim suara frio, esperando até que o homem tivesse voltado em segurança.
— Onde vamos cuidar dele?
— Aqui.
— Está bem. Bote uns homens de vigia.
— Cadê o enfermeiro?