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O Rei estava exausto. Depois de ter tomado um pouco de café, sentiu-se melhor, então recostou-se na cadeira e adormeceu.

Acordou sobressaltado e olhou para a cama. Peter Marlowe estava de olhos fitos nele.

— Alô — disse Peter Marlowe, debilmente.

— Como se sente? — O Rei se espreguiçou e levantou-se da cadeira.

— Uma merda. Vou vomitar a qualquer momento. Sabe, não há nada... nada que eu possa dizer...

O Rei acendeu o último dos Kooas e enfiou-o entre os lábios de Peter Marlowe.

— Você mereceu, amigão.

Enquanto Peter Marlowe ficava deitado, reunindo suas forças, o Rei lhe contou sobre o tratamento, e sobre o que tinha que ser feito.

— O único lugar que me vem à cabeça é o bangalô do Coronel — falou Peter Marlowe. — Mac pode acordar-me e me ajudar a sair da choça. Posso passar a maior parte do tempo deitado no meu beliche.

O Rei segurou com cuidado uma das suas vasilhas de rancho, enquanto Peter Marlowe vomitava.

— É melhor deixá-la à mão. Desculpe. Meu Deus! — exclamou Peter Marlowe, estarrecido, ao se lembrar. — O dinheiro? Fui buscá-lo?

— Não. Desmaiou do lado de cá da cerca.

— Ó, meu Deus, não creio que tenha forças para ir hoje.

— Não esquente a cabeça, Peter. Logo que se estiver sentindo melhor. Não há necessidade de se arriscar.

— Não vai prejudicar o negócio?

— Não, nem se preocupe com isso.

Peter Marlowe vomitou de novo, e quando acabou, estava com uma aparência terrível.

— Gozado — falou, tentando controlar nova ânsia de vômito. — Tive um sonho esquisitíssimo. Sonhei que tinha tido uma baita briga com Mac, o Coronel e o velho Padre Donovan. Meu Deus, ainda bem que foi sonho. — Forçou-se a se apoiar no braço sadio, ficou tonto e caiu deitado. — Quer ajudar-me a levantar?

— Não se apresse. Acaba de soar o toque de apagar-as-luzes.

— Meu chapa!

O Rei correu para a janela e fitou a escuridão. Viu o débil contorno do homenzinho com jeito de fuinha, agachado contra o muro.

— Depressa — sussurrou o homem — o anel está aqui comigo.

— Vai ter que esperar — falou o Rei. — Só lhe posso dar o dinheiro daqui a dois dias.

— Ora, seu sacana nojento...

— Escute aqui, seu filho da puta — rosnou o Rei. — Se quiser esperar os dois dias, ótimo! Se não quiser, vá à merda!

— Está certo, dois dias. — O homem praguejou obscenamente e desapareceu.

O Rei ouviu o barulho dos pés que se afastavam, e daí a um momento o barulho de outros pés que o perseguiam. A seguir, o silêncio, quebrado apenas pelo canto dos grilos.

— Que história foi essa? — quis saber Peter Marlowe.

— Nada — respondeu o Rei, imaginando se o homem havia escapado. Mas sabia que, houvesse o que houvesse, o diamante seria dele. Contanto quetives-se o dinheiro.

22

Durante dois dias, Peter Marlowe lutou contra a morte. Mas tinha vontade de viver. E viveu.

— Peter! — Mac acordou-o, sacudindo-o suavemente.

— Sim, Mac?

— Está na hora.

Mac ajudou Peter Marlowe a descer do beliche, e os dois juntos enfrentaram as escadas, a juventude se apoiando na velhice, e foram pela escuridão até o bangalô.

Steven já estava lá, esperando. Peter Marlowe deitou-se na cama de Larkin e sujeitou-se novamente à picada da agulha. Teve que morder os lábios com força, para não gritar. Steven era gentil, mas a agulha era rombuda.

— Pronto — disse Steven. — Agora, vamos ver sua temperatura. — Enfiou o termômetro na boca de Peter Marlowe, depois tirou as ataduras e examinou a ferida. A inchação diminuíra e a tonalidade verde e roxa desaparecera, e cascas limpas e duras cobriam a ferida. Steven polvilhou mais sulfa na ferida.

— Muito bom. — O enfermeiro estava satisfeito com o sucesso do tratamento, mas nada satisfeito com o dia de hoje. Aquele nojento daquele Sargento Flaherty, pensou, homem malvado. Sabe que odeio fazer isso, mas sempre me escolhe. — Que lixo — falou em voz alta.

— Como?

Mac, Larkin e Peter Marlowe estavam preocupados.

— Não está bom? — perguntou Peter Marlowe.

— Está sim, meu caro. Estava falando de outra coisa. Pronto, vamos ver a temperatura. — Steven pegou o termômetro e sorriu para Peter Marlowe, lendo a medida. — Normal. Quer dizer, um décimo acima do normal, mas isso não faz mal. Tem sorte, muita sorte. — Ergueu o vidro vazio de antitoxina. — Acabei de dar o restinho.

Steven tomou-lhe o pulso, e disse:

— Muito bom. — Ergueu os olhos para Mac. — Tem uma toalha?

Mac lhe entregou, e Steven molhou-a com água fria e pôs uma compressa na cabeça de Peter Marlowe.

— Achei isso aqui — falou o enfermeiro, dando-lhe duas aspirinas. — Vão ajudar, meu caro. Agora, descanse um pouquinho. — Virou-se para Mac, levantou-se, deu um suspiro e alisou o sarongue â volta dos quadris. — Não há mais nada que eu possa fazer. Ele está muito fraco. Terão que lhe dar um pouco de sopa. E todos os ovos em que puderem botar as mãos. E terão que cuidar dele. — Voltou a olhar para a esqualidez de Peter Marlowe. — Deve ter perdido uns sete quilos nos últimos dois dias, e isso é perigoso, no peso em que está, pobrezinho. Deve pesar uns 50 quilos, o que não é muito, para o tamanho dele.

— Nós... hã... gostaríamos de lhe agradecer, Steven — disse Larkin, gravemente. — Somos muito gratos por tudo o que fez. Sabe disso.

— Tenho sempre prazer em ajudar — falou Steven, alegremente, ajeitando um cachinho sobre a testa.

Mac lançou um olhar para Larkin.

— Se houver alguma coisa... hã... Steven, que a gente possa fazer, é só falar.

— Que gentil. Os dois são tão... gentis — falou, delicadamente, admirando o Coronel, aumentando o embaraço deles, brincando com a medalha de São Cristóvão qüe trazia ao pescoço. — Se pudessem tomar o meu lugar no serviço das fossas, amanhã, bem, eu faria qualquer coisa. Qualquer coisa, mesmo. Não suporto aquelas baratas fedorentas. Nojentas — falou, afetadamente. — Será que fariam isso?

— Está bem, Steven — falou Larkin, acidamente.

— Nós o veremos ao alvorecer, então — resmungou Mac, e recuou um pouco, fugindo da tentativa de carícia de Steven. Larkin não foi rápido o bastante, e Steven botou a mão na cintura do Coronel, dando-lhe uma palmadinha carinhosa.

— Boa-noite, meus caros. Ah, os dois são tão bonzinhos para o Steven. Quando ele se foi, Larkin olhou ferozmente para Mac.

— Se disser alguma coisa, arranco fora suas orelhas.

— Qual é, homem, não se exalte. — Mac deu uma risadinha. — Mas você estava dando a impressão de que estava gostando. — Inclinou-se para Peter Marlowe, que estivera observando tudo. — Não foi, Peter?

— Acho que vocês dois estão prontos para tirar uma casquinha — disse Peter Marlowe, sorrindo debilmente. — Ele foi bem pago, mas vocês ficam oferecendo os seus serviços, tentando-o. Mas o que viu em vocês, dois bodes velhos, eu não entendo.

Mac abriu um sorriso para Larkin.

— Ah, o rapazinho está bem melhor. Agora pode virar-se sozinho, para variar. E não ficar, como diz o Rei, “de papo pro ar”, fugindo do batente.

— Faz dois ou três dias, desde a primeira injeção? — perguntou Peter Marlowe.

— Dois dias.

Dois dias? Parece mais dois anos, pensou Peter Marlowe. Mas amanhã estarei forte o bastante para ir buscar o dinheiro.

Naquela noite, depois da última chamada, o Padre Donovan veio jogar bridge com eles. Quando Peter Marlowe contou-lhes sobre o pesadelo que tivera, em que brigara com eles, todos acharam graça.

— Pois é, meu rapaz — falou Mac — a cabeça da gente apronta as ilusões mais esquisitas, quando se está com febre.

— É — concordou o Padre Donovan. Depois, sorriu para Peter. — Que bom que seu braço tenha-se curado, Peter.

Peter Marlowe devolveu o sorriso.

— Não há muita coisa que se passe por aqui que o senhor desconheça, não é?