— Peter.
— De onde vem? Onde fica sua casa?
Perguntas e mais perguntas, pensou Peter Marlowe. Agora, vai querer saber se sou casado, ou quanto tenho no banco. A curiosidade levara-o a atender o chamado do Rei, e quase se amaldiçoou por ter sido tão curioso. Mas a glória dos ovos frigindo apazigüou-o.
— Portchester — respondeu. — Uma aldeiazinha na costa sul. Em Hampshire.
— É casado, Peter?
— Você é?
— Não. — O Rei teria continuado, se os ovos não tivessem ficado prontos. Tirou a frigideira do fogareiro e fez um sinal para Peter Marlowe. — Os pratos ficam atrás de você — falou. Depois, acrescentou, bem orgulhoso: -Olhe só!
Eram os melhores ovos fritos que Peter Marlowe já vira, e assim ele fez ao Rei o maior elogio no mundo inglês:
— Nada mau — disse, inexpressivamente. — Nada mau mesmo, acho. — levantou os olhos para o Rei e manteve a fisionomia tão impassível quanto a voz. deste modo aumentando o elogio.
— Mas de que diabo está falando, seu filho da puta? — explodiu o Rei, furioso. — São os ovos mais fabulosos que já viu na vida!
Peter Marlowe ficou chocado, e fez-se um silêncio mortal na choça. Um assobio repentino quebrou o encanto. Instantaneamente, Dino e Miller se puseram de pé e correram para junto do Rei, e Max ficou vigiando a porta. Miller e Dino empurraram a cama do Rei para o canto e pegaram os tapetes e enfiaram-nos sob o colchão. Depois, empurraram as outras camas para junto da do Rei, e então, como todo o mundo em Changi, o Rei ficou com um espaço de apenas l,20m por l,80m. O Tenente Grey estava parado na porta. Às suas costas, a um nervoso passo de distância, o Sargento Masters.
Os americanos fitaram Grey, e depois de uma pausa, de tamanho suficiente para ser insultante, todos se levantaram. Depois de uma pausa igualmente insultante, Grey fez uma breve continência e disse:
— À vontade.
Só Peter Marlowe não se mexera, continuava sentado na cadeira.
— Levante-se — sibilou o Rei. — Ele vai tirar seu couro. Levante-se! — Sabia por longa experiência que Grey agora estava indócil. Desta feita, os olhos de Grey não o estavam perscrutando, achavam-se apenas fitos em Peter Marlowe, e até mesmo o Rei se crispou.
Grey cruzou toda a cabana sem pressa, até ficar parado diante de Peter Marlowe. Desviou os olhos de Marlowe e fitou os ovos, por um longo momento. Depois, olhou para o Rei, e novamente para Peter Marlowe.
— Está bem longe de casa, não é, Marlowe? .
Os dedos de Peter Marlowe pegaram sua caixa de tabaco e botaram um pouco do fumo num pedaço de rota. Fez um cigarro afunilado e levou-o aos lábios. A extensão de sua pausa era uma bofetada em Grey.
— Ah, não sei, meu velho — disse, suavemente. — Um inglês está em casa onde quer que esteja, não acha?
— Onde está sua braçadeira?
— No cinto.
— Devia estar no seu braço. São as ordens.
— São ordens japonesas. Não gosto de ordens japonesas — disse Peter Marlowe.
— São também as ordens do campo — retrucou Grey.
Suas vozes eram bem calmas, apenas levemente irritadas aos ouvidos americanos, mas Grey sabia e Peter Marlowe sabia. E houve uma súbita declaração de guerra entre ambos. Peter Marlowe odiava os japoneses e Grey representava para ele os japoneses, pois Grey fazia cumprir as ordens do campo que também eram ordens japonesas. Implacavelmente. Entre eles havia um ódio mais profundo, o congênito ódio de classes. Peter Marlowe sabia que Grey o desprezava por seu berço e sotaque, que era o que Grey desejava ter, acima de tudo, e jamais teria.
— Coloque-a! — Grey estava no seu direito, ao dar a ordem.
Peter Marlowe deu de ombros, pegou a braçadeira e enfiou-a no cotovelo esquerdo. Na braçadeira, havia seu posto: Capitão-aviador, Real Força Aérea. Os olhos do Rei se arregalaram. Jesus, um oficial, e eu ia pedir-lhe que...
— Desculpe interromper seu almoço — dizia Grey — mas parece que alguém perdeu alguma coisa.
— Perdeu alguma coisa? — Santo Cristo, o Rei quase berrou. O Ronson! Ó meu Deus, gritava o seu medo. livre-se do maldito isqueiro!
— O que foi, Cabo? — indagou Grey astutamente, notando o suor que porejava o rosto do Rei.
— Está quente, não é? — disse o Rei, bobamente. Podia sentir a camisa engomada se desfazendo com o suor. Sabia que fora incriminado, que lhe tinham dado um golpe. E sabia que Grey estava brincando com ele. Chegou a pensar por um instante em fugir, mas Peter Marlowe estava entre a sua pessoa e a janela, e Grey poderia pegá-lo facilmente. E se corresse, estaria admitindo sua culpa.
Viu Grey dizer alguma coisa, e ficou imóvel entre a vida e a morte.
— Como disse, senhor? — e o “senhor” não era um insulto, pois o Rei fitava Grey, com incredulidade.
— Disse que o Coronel Sellars registrou queixa do desaparecimento de um anel de ouro! — repetiu Grey, malevolamente.
Por um momento, o Rei sentiu a cabeça leve. Não era o Ronson! Entrara em pânico à toa! Era só o maldito anel do Sellars. Ele o vendera a pedido do Sellars há três semanas... com um belo lucro. Com que então o Sellars dera queixa de roubo, hem? Filho da puta mentiroso.
— Puxa — falou, um fio de riso na voz — puxa, que abacaxi. Roubado. Imagine só!
— Eu posso imaginar — disse Grey, com aspereza. — E você?
O Rei não respondeu. Mas teve vontade de sorrir. Não era o isqueiro. Estava salvo!
— Conhece o Coronel Sellars? — perguntou Grey.
— Ligeiramente, senhor. Já joguei bridge com ele, uma ou duas vezes — replicou o Rei, agora bem calmo.
— Ele lhe mostrou o anel, alguma vez? — continuou Grey, implacável.
O Rei vasculhou a memória. O Coronel Sellars lhe mostrara o anel duas vezes. À primeira, quando pedira ao Rei que o vendesse para ele, a segunda quando fora pesar o anel.
— Ah, não, senhor — falou, inocentemente. O Rei sabia que estava seguro. Não havia testemunhas.
— Tem certeza de que nunca o viu?
— Ah, não, senhor.
Grey ficou de repente cheio do jogo de gato-e-rato, e estava nauseado de vontade de comer aqueles ovos. Teria feito qualquer coisa, qualquer coisa por um deles.
— Tem fogo, Grey, meu velho? — pediu Peter Marlowe. Não trouxera consigo o seu isqueiro nativo. E precisava fumar. Desesperadamente. Sua antipatia por Grey lhe ressecara os lábios.
— Não. — Arranje o fogo você mesmo, pensou Grey, com raiva, virando-se para ir embora. E foi então que ouviu Peter Marlowe pedir ao Rei:
— Quer emprestar-me seu Ronson, por favor?
Grey voltou-se, devagarinho. Viu que Peter Marlowe sorria para o Rei. As palavras pareciam gravadas no ar. Depois, espalharam-se para todos os cantos da choça.
Aterrorizado, tentando ganhar tempo, o Rei começou a pegar uns fósforos.
— Está no seu bolso esquerdo — esclareceu Marlowe.
E nesse momento o Rei viveu e morreu e nasceu de novo. Os homens na choça não respiravam. Pois iam ver o Rei feito em pedaços. Iam ver o Rei ser pegado com a boca na botija e levado preso e trancafiado, uma coisa que era a maior das impossibilidades. E no entanto aqui estava Grey e aqui estava o Rei e aqui estava o homem que dedurara o Rei... e o colocara como o cordeiro do sacrifício no altar de Grey. Alguns dos homens estavam horrorizados, outros se rejubilavam, ainda outros sentiam pena, e Dino pensou com raiva: Pombas, era o meu dia de tomar conta da caixa, amanhã!
— Por que não acende o cigarro dele? — perguntou Grey. A fome o abandonara, sentia apenas calor, em seu lugar. Grey sabia que não havia nenhum isqueiro Ronson na lista.
O Rei pegou o isqueiro e acendeu o cigarro de Peter Marlowe. A chama que o queimaria era reta e pura.
— Obrigado. — Peter Marlowe sorriu, e só então deu-se conta da enormidade do seu gesto.
— Com que então... — falou Grey, pegando o isqueiro. Suas palavras soaram majestosas, definitivas e violentas.