— Não mais do que eu — disse Peter Marlowe. Dividiu os cigarros e lançou um olhar para Mac. — O recital é de quê?
— De Bach, meu rapaz — respondeu Mac, controlando-se para não desatar a rir histericamente, de novo. Moveu a cabeça mais para junto do fone de ouvido. — Calem-se, agora, está bem? Quero apreciar a música.
— Quem sabe nós nos podemos alternar — disse Larkin. — Embora qualquer um que aprecie Bach seja meio sem gosto.
Peter Marlowe fumou seu cigarro e disse amavelmente para Shagata.
— Agradeço-vos pelos cigarros.
As moscas rondavam o balde e sua tampa tosca. As chuvas da tarde vieram cedo e diminuíram o fedor, e depois o Sol saiu e começou a secar a umidade de Changi.
O Rei caminhou ao longo dos bangalôs, cônscio dos olhares fitos nele. Parou cautelosamente diante do bangalô condenado.
— Tabe, Shagata-san — falou. — Ichi-bon dia, não é? Posso falar com meu ichi-bon amigo?
Shagata fitava-o, sem nada entender.
— Ele suplica vossa permissão para falar comigo — disse Peter Marlowe. Shagata pensou por um momento, depois concordou.
— Por causa do dinheiro que ganhei com a venda, permito que faleis. — Virou-se para Peter Marlowe. — Se me derdes vossas palavras de que não ten-tareis escapar.
— Tendes as nossas palavras.
— Sede rápidos. Ficarei vigiando. — Shagata moveu-se, para poder ficar de olho na estrada.
— Corre um boato de que os guardas estão enxameando na casa da guarda — começou o Rei, nervosamente. — Puta que o pariu, pois sim que vou dormir hoje à noite! Eles são bem do tipo de filhos da mãe que agiriam durante a noite. — Sentia os lábios secos, e estivera de olho na cerca o dia todo, esperando um sinal dos guerrilheiros que o fizesse decidir-se pela tentativa de fuga. Mas não vira nenhum. — Ouçam. — Baixou a voz e contou-lhes sobre o plano. — Quando a matança começar, ataquem o guarda e tentem escapar junto da nossa choça. Procurarei dar cobertura a vocês três, mas não esperem demais.
A seguir, levantou-se, fez um sinal para Shagata e se afastou. Depois que voltou à choça americana, reuniu um conselho de guerra. Contou-lhes seu plano, mas não contou que apenas dez deles poderiam escapar. Todos discutiram o plano e depois resolveram esperar.
— Nada mais podemos fazer — falou Brough, dando eco aos temores de todos. — Se tentássemos agora, nos fariam em pedaços.
Apenas os muito doentes dormiram, naquela noite. Ou aqueles... pouquíssimos... que se podiam entregar tranqüilamente nas mãos de Deus... ou do Destino. Dave Daven estava dormindo.
— Trouxeram Dave de volta de Utram Road hoje a tarde — sussurrara Grey, ao lhes trazer a refeição da noite.
— Como está ele? — perguntou Peter Marlowe.
— Está pesando apenas 32 quilos.
Daven dormiu durante aquela noite e durante o espantoso dia seguinte, e morreu em coma enquanto Mac ouvia o locutor dizer:
“A segunda bomba atômica destruiu Nagasáqui. O Presidente Truman deu um ultimato final ao Japão... renda-se incondicionalmente, ou enfrente a destruição total.”
No dia seguinte, os grupos de trabalho saíram e, o que parecia inacreditável, voltaram. As rações continuaram a chegar ao campo e Samson as pesou em público e levou a quantidade extra aos homens que o haviam feito encarregado dos mantimentos. Ainda havia ração para dois dias no depósito e nas cozinhas, e havia comida pronta, e as moscas abundavam, e nada se modificara.
Os percevejos mordiam e os mosquitos picavam e as ratas amamentavam os filhotes. Alguns homens morreram. A Enfermaria Seis ganhou três novos pacientes.
Mais um dia, e mais outra noite, e mais outro dia. Foi então que Mac ouviu as palavras sagradas:
“Aqui fala Calcutá. A rádio de Tóquio acaba de anunciar que o Governo japonês rendeu-se incondicionalmente. Três anos e duzentos e cinqüenta dias desde que os japoneses atacaram Pearl Harbor... A guerra acabou. Deus salve o Rei!”
Logo, Changi inteira já sabia da notícia. E as palavras tornaram-se parte da Terra e do céu, e das paredes e celas de Changi.
No entanto, durante mais dois dias e duas noites, nada se modificou. No terceiro dia, o Comandante do Campo veio andando ao longo dos bangalôs com Awata, o Sargento japonês.
Peter Marlowe, Mac e Larkin viram os dois homens se acercando, e morreram 1.000 mortes a cada passo que davam. Souberam imediatamente que sua hora havia chegado.
26
— Uma pena — disse Mac.
— É — replicou Larkin.
Peter Marlowe simplesmente fitava Awata, petrificado.
O rosto do Comandante do Campo estava profundamente vincado de fadiga, mas, mesmo assim, mantinha os ombros retos e caminhava com firmeza. Estava vestido com capricho, como sempre, com a manga esquerda da camisa enfiada cuidadosamente no cinto. Calçava sandálias de madeira, e usava o boné esverdeado por anos de suor tropical. Subiu os degraus da varanda e hesitou, diante da porta.
— Bom-dia — cumprimentou, com voz rouca, enquanto eles se levantavam.
Awata deu uma ordem com voz gutural ao guarda. Este fez uma reverência e foi para junto de Awata. Mais uma ordem seca, e os dois homens puseram os fuzis ao ombro e se retiraram.
— Acabou — falou o Comandante do Campo, com voz rouca..— Peguem o rádio e venham comigo.
Abobalhados, fizeram o que ele mandou, e saíram do quarto para o Sol. E o Sol e o ar puro eram deliciosos. Seguiram o Comandante do Campo rua acima, observados pelos olhos atônitos de Changi.
Os seis coronéis mais antigos esperavam no alojamento do Comandante do Campo. Brough também estava lá. Todos bateram continência.
— À vontade, por favor — falou o Comandante do Campo, retribuindo a continência. Depois, virou-se para os três. — Sentem-se. Temos para com vocês uma dívida de gratidão.
— Acabou mesmo? — disse Larkin, com esforço.
— Sim. Estive ainda agora com o General. — O Comandante do Campo olhou para os homens calados, ordenando seus pensamentos. — Pelo menos, acho que acabou — disse. — Yoshima estava com o General. Eu falei... falei “A guerra acabou”. O General ficou olhando para mim, enquanto Yoshima traduzia. Esperei, mas ele nada falou, portanto repeti “A guerra acabou. Eu... eu... eu exijo sua rendição”. — O Comandante do Campo ficou esfregando a calva. — Não sabia o que mais podia dizer. Durante longo tempo, o General só olhou para mim. Yoshima não dizia absolutamente nada.
“Depois o General disse, e Yoshima traduziu: ‘É. A guerra acabou. Queira retornar ao seu posto no campo. Dei ordens aos meus guardas para darem as costas ao campo e os protegerem contra qualquer um que tente forçar a entrada no campo para machucá-los. Eles agora sã”o seus guardas... para sua proteção... até que eu receba novas ordens. O senhor ainda é o responsável pela disciplina do campo.’
“Não sabia o que falar, portanto pedi-lhe que dobrasse as rações e nos desse medicamentos, e ele disse: ‘Amanhã as rações serão dobradas. Receberão alguns medicamentos. Infelizmente, não temos muitos. Mas o senhor será o responsável pela disciplina. Meus guardas o protegerão contra aqueles que querem matá-lo.’
“Perguntei quem eram, o General deu de ombros e disse: ‘Os seus inimigos. A entrevista está encerrada.’
— Puta que o pariu! — exclamou Brough. — Quem sabe querem que a gente saia... para terem uma desculpa para atirar em nós.
— Não podemos deixar que os homens saiam — falou Smedly-Taylor, estarrecido. — Ficariam incontroláveis. Mas precisamos fazer alguma coisa. Quem sabe mandar que eles nos entreguem suas armas...
O Comandante do Campo levantou a mão.
— Acho que só o que podemos fazer é esperar. Estou... creio que chegará alguém. E até que chegue, devemos continuar como antes. Ah, sim. Temos permissão de mandar um grupo tomar banho de mar. Cinco homens de cada choça. Rotativamente. Ó, meu Deus! — exclamou, e era uma prece — espero que ninguém perca a cabeça. Ainda não há garantia de que os japoneses aqui obedecerão a ordem de rendição. Podem até continuar a lutar. Só o que podemos fazer é torcer pelo melhor... e preparar-nos para o pior. — Fez uma pausa e olhou para Larkin. — Acho que o rádio deve ser deixado aqui. — Fez um aceno para Smedly-Taylor. — Providenciará uma guarda permanente.