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— Vai mesmo? — disse o Rei, atormentado.

— Vai. — Peter Marlowe hesitou. — Lamenta que tenha acabado, não é?

— Deixe-me em paz. Puta que o pariu, deixe-me em paz! — berrou o Rei, afastando-se e voltando a sentar-se no toco de coqueiro.

— Vai dar tudo certo para você — disse Peter Marlowe. — E sou seu amigo. Nunca se esqueça disso. — Estendeu a mão esquerda e tocou o ombro do Rei, e sentiu o ombro se esquivar ao toque.

— Boa-noite, amigão — falou, suavemente. — Até amanhã. — E foi embora, sentindo-se muito infeliz. Amanhã, prometeu a si mesmo, amanha” vou poder ajudá-lo.

O Rei se ajeitou no toco do coqueiro, feliz por estar sozinho, aterrorizado por sua solidão.

Os Coronéis Smedly-Taylor, Jones e Sellars raspavam os pratos.

— Magnífico! — disse Sellars, lambendo o caldo dos dedos. Smedly-Taylor chupava o osso, embora já estivesse bem limpo.

— Jones, meu rapaz, tenho que lhe dar crédito. — Arrotou. — Que modo soberbo de terminar o dia. Delicioso! Igualzinho a coelho! A carne é um pouco dura e fíbrosa, mas uma delícia!

— Há anos que não aprecio tanto uma refeição! — exclamou Sellars. — A carne estava um pouco gordurosa, mas, pela madrugada, que maravilha! — Lançou um olhar para Jones. — Não consegue arranjar mais? Uma coxinha só é pouco.

— Talvez. — Jones pegou com muita delicadeza o último grão de arroz. Seu prato estava seco e vazio, e ele se sentia entupido. — Foi muita sorte, não foi?

— Onde foi que as arranjou?

— Foi o Blakely que me deu a dica. Um australiano as estava vendendo.

— Jones arrotou. — Comprei todas as que ele tinha. — Olhou para Smedly-Taylor. — Que sorte que você tivesse o dinheiro.

Smedly-Taylor resmungou:

— É. — Abriu a carteira e jogou sobre a mesa 360 dólares. — Aí há dinheiro para mais seis. Não há necessidade de fazermos economia, não é, cavalheiros?

— Se tinha todo este dinheiro de reserva, por que não gastou um pouco há meses? — indagou Sellars, olhando para as notas.

— É mesmo, por que não? — Smedly-Taylor levantou-se e espreguiçou-se.

— Porque o estava guardando para hoje! E fim de papo — acrescentou, os olhos de granito fitos em Sellars.

— Ora, qual é, homem, não quero que conte nada. Só que não entendo como conseguiu fazer a coisa, só isso.

— Deve ter tido ajuda de alguém por lá — disse Jones, rindo. — Ouvi dizer que o Rei quase teve um enfarte!

— O quê tem o Rei a ver com meu dinheiro? — perguntou Smedly-Taylor.

— Nada. — Jones começou a contar o dinheiro. Havia mesmo 360 dólares ali, o bastante para 12 coxas de Rum tikus, a 30 dólares cada, que era o preço real delas, e não 60, como Smedly-Taylor acreditava. Jones sorriu consigo mesmo, pensando que Smedly-Taylor bem podia pagar o dobro, com todo o dinheiro que tinha agora. Ficou imaginando como Smedly-Taylor conseguira efetuar o roubo, mas sabia que o outro estava certo em não divulgar seus segredos. Como os três outros Rum tikus. Aqueles que ele e Blakely haviam cozido e comido em segredo à tarde. Blakely comera um, e ele os outros dois. E aqueles dois, somados ao que devorara agora, é que lhe davam aquela sensação de saciedade. — Meu Deus — falou, esfregando a barriga — acho que não posso comer tanto assim, todos os dias!

— Vai-se acostumar — falou Sellars. — Ainda estou com fome. Seja bonzinho e tente arranjar mais.

— Que tal uma partidinha de bridge? — falou Smedly-Taylor.

— Excelente — disse Sellars. — Quem será o quarto?

— Samson?

— Aposto que iria ficar muito aborrecido, se soubesse da carne — falou Jones, rindo.

— Quanto tempo acha que o nosso pessoal vai demorar a chegar a Cingapura? — indagou Sellars, tentando disfarçar sua ansiedade.

Smedly-Taylor olhou para Jones.

— Alguns dias. No máximo uma semana. Se os japoneses daqui forem mesmo ceder.

— Se nos deixaram o rádio, é porque pretendem fazê-lo.

— Espero que sim. Ó, meu Deus, espero que sim. Entreolharam-se, a gostosura da comida esquecida, perdida no medo do futuro.

— Não há com que se preocupar. Vai... dar tudo certo — disse Smedly-Taylor, externamente confiante. Mas, no íntimo, estava em pânico, pensando em Maisie, nos filhos e na filha, perguntando-se se estariam vivos.

Pouco antes do alvorecer, um avião quadrimotor sobrevoou o campo. Se era dos Aliados ou dos japoneses, ninguém sabia, mas, ao primeiro ronco dos motores, os homens haviam entrado em pânico, à espera das bombas que deviam chover sobre eles. Quando elas não caíram, e o avião se afastou, o pânico cresceu ainda mais. Quem sabe se esqueceram de nós... nunca virão.

Ewart entrou na choça às escuras e sacudiu Peter Marlowe, para acordá-lo.

— Peter, corre o boato de que o avião voou em círculos sobre o campo de pouso... e que um homem de pára-quedas saltou dele!

— Você viu?

— Não.

— Falou com alguém que tenha visto?

— Não, é só boato. — Ewart tentou não demonstrar seu temor. — Estou morto de medo de que, tão logo a esquadra entre no porto, os amarelos enlouqueçam.

— Não vão enlouquecer!

— Fui até o gabinete do Comandante do Campo. Há um bando de caras lá, e ficam dando as notícias o tempo todo. A última delas dizia que... —

Ewart não conseguiu falar, por um momento, depois continuou: — ... que as baixas em Hiroxima e Nagasáqui ultrapassam trezentos mil. Dizem que as pessoas continuam morrendo como moscas, por lá... que essa bomba-infernal afeta o ar de um jeito tal que continua matando. Meu Deus, se isso acontecesse com Londres, e eu estivesse no comando de um campo como este... chacinaria todo o mundo. Juro por Deus que o faria.

Peter Marlowe acalmou-o, depois saiu da choça e foi até o portão, na aurora que despontava. Por dentro, ainda estava com medo. Sabia que Ewart tinha razão. Uma bomba-infernal como aquela era demais. Mas vislumbrou, de repente, uma grande verdade, e abençoou o cérebro que inventara tal bomba. Somente as bombas haviam salvo Changi do esquecimento. Ah, disse para si mesmo, não importa o que aconteça por causa das bombas, abençoarei as duas primeiras, e os homens que as fizeram. Somente eles foram capazes de me devolver a vida, quando não havia mais nenhuma esperança de vida. E embora as duas primeiras tenham consumido uma quantidade incrível de gente, foi pela sua imensidão que salvaram as vidas de inúmeras centenas de milhares de outras pessoas. Nossas. E deles. Pelo Senhor Deus, é a pura verdade.

Encontrou-se ao lado do portão principal. Os guardas estavam lá, como sempre. Voltavam as costas para o campo, ainda de fuzil nas mãos. Peter Marlowe observou-os, curiosamente. Tinha certeza de que esses homens morreriam cegamente em defesa dos homens que há apenas um dia eram seus inimigos desprezíveis.

Meu Deus, pensou Peter Marlowe, como há gente incrível neste mundo.

E então, de repente, em meio à luz crescente da aurora, ele viu uma aparição. Um homem estranho, um homem de verdade, com largura e espessura, um homem que tinha jeito de homem. Um homem branco. Usava um estranho uniforme verde, as botas de pará-quedista brilhavam, o emblema na boina faiscava como fogo, trazia um revólver no cinto largo e carregava uma mochila impecável às costas.

O homem caminhou pelo centro da estrada, com os calcanhares batendo no chão, até chegar diante da casa da guarda.

O homem — agora Peter Marlowe podia ver que tinha o posto de Capitão — o Capitão parou, olhou ferozmente para os guardas e falou:

— Saúdem-me, seus malditos sacanas.

Quando os guardas olharam para ele, apalermados, o Capitão chegou perto do guarda mais próximo, arrancou-lhe o fuzil com baioneta das mãos, enfiou-o violentamente no chão, e repetiu:

— Saúdem-me, seus malditos sacanas.

Os guardas fitavam-no, nervosamente. Então o Capitão tirou do cinto o revólver e disparou um único tiro no chão, junto aos pés dos guardas, repetindo: