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Peter Marlowe correu para adiante, desesperadamente, levantando a mão para acenar para o amigo. Mas o Rei não olhou para trás. Não olhou para trás nem uma vez.

Subitamente, Peter Marlowe sentiu-se muito só, parado ah, junto ao portão de Changi.

— Valeu a pena ver isso — debochou Grey. Peter Marlowe virou-se para ele, furioso.

— Suma antes que eu tome uma providência.

— Foi bom vê-lo ir embora desse jeito. “Você, Cabo, mexa essa bunda e entre no caminhão.” — Havia um brilho maldoso nos olhos de Grey. — Como o lixo que era.

Mas Peter Marlowe lembrava-se do Rei como realmente era. Aquele não era o Rei, que dizia humildemente: “Sim, Sargento.” Não o Rei. Este fora um outro homem, arrancado do ventre de Changi, o homem que Changi nutrira por tanto tempo.

— Como o ladrão que era — disse Grey, deliberadamente. Peter Marlowe fechou o punho esquerdo.

— Já lhe avisei, pela última vez.

Então, mandou um soco na cara do Grey, lançando-o para trás, mas Grey não caiu, e se jogou sobre Peter Marlowe. Os dois homens se engalfinharam, e subitamente Forsyth apareceu ao lado de ambos.

— Parem com isso — ordenou. — Mas que diabo, por que estão brigando?

— Por nada — disse Peter Marlowe.

— Tire a mão de cima de mim — falou Grey, soltando o braço da mão de Forsyth. — Saia do caminho!

— Mais encrenca por parte de qualquer dos dois, e mando prendê-los no alojamento. — Estarrecido, Forsyth notou que um dos homens era Capitão, o outro Capitão-Aviador. — Deviam envengonhar-se, brigando como simples soldados! Vão, os dois, sumam daqui. A guerra acabou, pelo amor de Deus!

— Acabou? — Grey lançou mais um olhar para Peter Marlowe, depois se afastou.

— O que há entre vocês dois?

Peter Marlowe tinha o olhar perdido ao longe. Já não se enxergava nem sinal do caminhão.

— Você não compreenderia — disse, e foi embora.

Forsyth ficou olhando para ele, até que desapareceu de seus olhos. Pode repetir isso um milhão de vezes, pensou, exausto. Não compreendo nada de nenhum de vocês.

Voltou-se para o Portão de Changi. Como sempre, havia grupos de homens olhando calados para fora. Como sempre, o portão estava vigiado. Mas os guardas eram oficiais, e não mais japoneses ou coreanos. No dia de sua chegada, o Capitão mandara-os embora, e postara uma guarda de oficiais para cuidar da segurança do campo e evitar que os homens saíssem. Mas os guardas eram desnecessários, pois ninguém tentara escapar. Não entendo, pensou Forsyth, cansadamente. Não faz sentido. Nada aqui faz sentido.

Foi então que se lembrou de que não dera queixa do americano suspeito... o tal Cabo. Tivera tanto com que se preocupar que simplesmente se esquecera do homem. Seu idiota, agora é tarde demais! Foi então que se lembrou de que o Major americano iria voltar. Ótimo, pensou, vou contar-lhe. Ele se encarregará do sujeito.

Dois dias depois, chegaram mais americanos. E um General americano de verdade. Estava cercado, como uma abelha-rainha, por um enxame de fotógrafos, repórteres e ajudantes-de-ordens. Levaram o General ao bangalô do Comandante do Campo. Mandaram que Peter Marlowe, Mac e Larkin fossem para lá. O General pegou o fone do rádio, e fingiu escutar.

— Assim, General!

— Mais uma foto, General!

Empurraram Peter Marlowe para a frente, e mandaram que se debruçasse sobre o rádio, como se estivesse explicando seu funcionamento ao General.

— Desse jeito, não... deixe ver seu rosto. É, deixe ver seus ossos, Sam, bem na luz. Está melhor.

Naquela noite, o terceiro, o último, e o maior medo crucificou Changi. O medo do amanhã.

Agora, Changi inteira sabia que a guerra acabara. O futuro tinha que ser enfrentado. O futuro fora de Changi. O futuro em agora. Agora.

E os homens de Changi recolheram-se dentro de si mesmos. Não havia outro lugar para onde ir. Nenhum lugar onde se esconder. Nenhum lugar, exceto lá dentro. E lá dentro havia o terror.

A Esquadra aliada chegou a Cingapura. Mais gente de fora convergiu sobre Changi.

Foi então que as perguntas começaram.

— Nome, posto, número de série, unidade?

— Onde lutou?

— Quem morreu?

— Quem foi morto?

— E quanto às atrocidades? Quantas vezes foi espancado? Quem viu ser morto a baioneta?

— Ninguém? Impossível! Pense, homem. Use a cabeça! Recorde. Quantos morreram? No barco? Três, quatro, cinco? Por quê? Quem estava lá?

— Quem sobrou de sua unidade? Dez? De um regimento inteiro? Pronto, assim está melhor. Bem, e como morreram os outros? Sim, os detalhes!

— Ah, viu-os serem mortos a baioneta!

— Três Pagoda Pass? Ah, a estrada de ferro! Sim, sabemos do caso. O que pode acrescentar? Quanta comida recebiam? Anestésicos? Claro, desculpe, esqueci. Cólera?

— Sim, sei tudo sobre o Campo Três. E quanto ao Quatorze? Aquele na fronteira da Birmânia com o Sião? Milhares morreram ali, não foi?

Junto com as perguntas, os estranhos traziam opiniões. Os homens de Changi ouviam quando eram sussurradas, de boca em boca.

— Viu aquele homem? Meu Deus, é impossível! Está andando pelado! Em público!

— E olhe ali! Há um homem fazendo necessidades em público! E, Santo Deus, não usa papel! Usa água e as mãos! Meu Deus... todos agem assim!

— Olhe só aquela cama imunda! Cristo, está cheia de percevejos!

— A que degradação foram reduzidos os desgraçados... pior do que animais!

— Deveriam estar num hospício! Está certo que foram os japoneses que fizeram isso com eles, mas mesmo assim seria mais seguro trancafiá-los. Não parecem saber o que é certo e o que é errado!

— Olhe só como se empanturram daquela nojeira! Meu Deus, a gente lhes dá pão e batata, e querem arroz!

— Tenho que voltar logo para o navio. Mal posso esperar para chamar os rapazes. É uma oportunidade única na vida, ver uma coisa dessas.

— Meu Deus, aquelas enfermeiras estão-se arriscando, andando por aí.

— Qual nada, estão perfeitamente seguras. Já vi um bocado de garotas vindo espiá-los. Puxa vida, mas aquele lá é uma piada!

— Veja só o modo revoltante como os prisioneiros olham para elas!

Junto com as perguntas e opiniões, os estranhos trouxeram respostas.

— Ah, Capitão-Aviador Marlowe? Sim, recebemos uma resposta do Almirantado. O Comandante Marlowe, da Marinha Real, está, bem, infelizmente seu pai está morto. Morreu em ação na rota de Murmansk. No dia 10 de setembro de 1943. Lamento. O seguinte!

— Capitão Spence? Sim. Temos muitas cartas para o senhor. Pode pegá-las na casa da guarda. Ah, sim. Sua... sua mulher e filha foram mortas em Londres, num bombardeio. Em janeiro deste ano. Lamento. Uma V2. Terrível. O seguinte!

— Tenente-Coronel Jones? Sim, senhor. Fará parte do primeiro grupo, que parte amanhã.— Irão todos os oficiais superiores. Bon voyage! O seguinte!

— Major McCoy? Ah, sim, estava perguntando sobre sua mulher e filho. Deixe .ver, estavam a bordo do Empress of Shropshire, não é mesmo? O navio que zarpou de Cingapura a 9 de fevereiro de 1942? Lamento, não temos notícias, exceto que foi afundado próximo a Bornéu. Há boatos de que houve sobreviventes, mas se houve mesmo, e onde estarão... ninguém sabe. Terá que ser paciente! Parece que há campos de prisioneiros de guerra por toda a parte... nas Celebes... em Bornéu... terá que ser paciente! O seguinte!

— Ah, Coronel Smedly-Taylor? Lamento, senhor, más notícias. Sua mulher foi morta num bombardeio. Há dois anos. O seu filho mais moço, Líder de Esquadrilha P.R. Smedly-Taylor, V.C., foi dado como morto sobrevoando a Alemanha, em 1944. Seu filho John está atualmente em Berlim, com as forças de ocupação. Eis seu endereço. Posto? Tenente-Coronel. O seguinte!