Ao descer as escadas, olho a grande sala, pensando em como, há apenas algumas horas, eu descansara a cabeça em seu ombro enquanto ele tocava piano. Tanta coisa aconteceu desde então. Abri os olhos e entrevi a extensão de sua depravação, e agora sei que ele não tem capacidade de amar — de dar e receber amor. O que eu mais temia aconteceu. E o estranho é que isso me torna livre.
A dor é tamanha que me recuso a reconhecê-la. Sinto-me anestesiada. De certa forma, saí do meu corpo e sou agora uma mera observadora dessa tragédia que vem pela frente. Tomo tranquilamente uma ducha rápida, focando apenas em cada um dos momentos seguintes. Apertar o vidro de sabonete líquido. Colocar o sabonete líquido de volta na prateleira. Esfregar a bucha no rosto, nos ombros... e no corpo todo, só ações simples, exigindo apenas pensamentos simples e mecânicos.
Termino o banho — e, como não lavei a cabeça, posso me secar depressa. Visto o roupão e pego a calça jeans e a camisa na minha mala. A calça arranha meu traseiro, mas, sinceramente, é uma dor que acho positiva, pois me distrai do que está acontecendo com meu coração despedaçado.
Abaixo-me para fechar a mala e bato o olho na sacola com o presente de Christian, o kit de um planador Blanik L23, um aeromodelo para ele montar. As lágrimas ameaçam. Ah, não... tempos mais felizes, quando havia esperança de mais. Tiro o kit da caixa, sabendo que preciso dar o presente a ele. Arranco uma folha do meu caderno, escrevo às pressas um bilhete para ele e o deixo em cima da caixa.
Isso me faz lembrar uma época feliz.
Obrigada.
Ana.
Olho-me no espelho. Um fantasma pálido e atormentado olha para mim. Faço um coque e não tomo conhecimento de quão inchadas estão minhas pálpebras de tanto chorar. Meu inconsciente aprova com um aceno de cabeça. Até ele sabe não ser debochado agora. Não posso acreditar que meu mundo esteja desmoronando e virando um monte estéril de cinzas à minha volta, todos os meus sonhos e as minhas esperanças desfeitos. Não, não, não pense nisso. Agora não, ainda não. Respirando fundo, pego a mala, e, depois de deixar o kit do planador com o bilhete no travesseiro dele, vou para a sala.
Christian está ao telefone, de calça jeans preta e camisa de malha, descalço.
— Ele disse o quê? — grita, sobressaltando-me. — Bem, ele poderia ter nos dito a verdade, porra. Qual é o telefone dele? Preciso ligar para ele... Welch, isso é uma verdadeira cagada. — Ele não tira aqueles olhos escuros e sorumbáticos de mim. — Encontre-a — diz secamente e desliga.
Vou até o sofá e pego a mochila, fazendo o possível para ignorá-lo. Tiro o Mac dali de dentro e volto para a cozinha, colocando o laptop cuidadosamente no balcão, junto com o BlackBerry e a chave do carro. Quando me viro, ele está me olhando estupefato e horrorizado.
— Preciso do dinheiro que o Taylor conseguiu com meu fusca.
Minha voz está clara e calma, sem emoção... extraordinário.
— Ana, eu não quero essas coisas, elas são suas — diz ele incrédulo. — Leve-as com você.
— Não, Christian. Eu só aceitei como empréstimo, e não as quero mais.
— Ana, seja sensata — até agora ele me censura.
— Não quero nada que me lembre de você. Só preciso do dinheiro que Taylor conseguiu com meu carro.
Minha voz é bem monótona.
Ele arqueja.
— Está realmente tentando me magoar?
— Não. — Fico séria, olhando para ele. Claro que não... eu te amo. — Não estou. Estou tentando me proteger — sussurro. Porque você não me quer do jeito que eu quero você.
— Por favor, Ana, leve essas coisas.
— Christian, eu não quero brigar. Só preciso do dinheiro.
Ele estreita os olhos, mas já não me intimida. Bem, só um pouquinho. Olho impassível para ele, sem pestanejar nem recuar.
— Aceita cheque? — pergunta ele, ácido.
— Aceito. Acho que você tem crédito para isso.
Ele não sorri, apenas se vira e vai para o estúdio. Corro os olhos demoradamente uma última vez pelo apartamento dele — pelas obras de arte nas paredes — todas abstratas, serenas, plácidas... frias, até. Combina, penso distraidamente. Meus olhos se deixam ir para o piano. Putz — se eu tivesse ficado de boca fechada, teríamos feito amor em cima do piano. Não, teríamos fodido, fodido em cima do piano. Bem, eu teria feito amor. A ideia me pesa na mente e no que me resta de coração. Ele nunca fez amor comigo, não é? Para ele, fazer amor sempre foi foder.
Christian volta e me entrega um envelope.
— Taylor conseguiu um bom preço. É um carro clássico. Pode perguntar a ele. Ele leva você para casa.
Faz um sinal de cabeça indicando um ponto atrás de mim. Viro-me, e Taylor está parado à porta, impecável como sempre naquele seu terno.
— Não precisa. Posso ir sozinha para casa, obrigada.
Viro-me de novo para Christian, e vejo a fúria mal contida em seus olhos.
— Vai me desafiar a cada vez?
— Por que mudar um hábito da vida inteira?
Encolho ligeiramente os ombros para ele, como um pedido de desculpas.
Ele fecha os olhos frustrado e passa a mão no cabelo.
— Por favor, Ana, deixe o Taylor levar você em casa.
— Vou buscar o carro, Srta. Steele — anuncia Taylor com autoridade.
Christian faz um sinal de cabeça para ele, e, quando olho, já se foi.
Viro-me para Christian. Estamos a um metro um do outro. Ele dá um passo à frente, e, instintivamente, recuo. Ele para, e a angústia em sua expressão é palpável, seus olhos cinzentos inflamados.
— Não quero que você vá — murmura, a voz cheia de desejo.
— Não posso ficar. Sei o que quero e você não pode me dar isso, e não posso dar o que você precisa.
Ele dá mais um passo à frente, e levanto as mãos.
— Não, por favor. — Recuo. Não há condição de eu tolerar ser tocada por ele agora, isso vai me matar. — Não posso fazer isso.
Pego a mala e a mochila, e me encaminho para o hall. Ele me segue, mantendo uma distância cautelosa. Aperta o botão do elevador, e as portas se abrem. Entro.
— Adeus, Christian — murmuro.
— Ana, adeus — diz ele baixinho, parecendo um homem absolutamente alquebrado, num sofrimento agonizante, refletindo como eu me sinto por dentro. Desvio o olhar dele antes que eu mude de ideia e tente consolá-lo.
As portas do elevador se fecham e lá vou eu descendo a toda para as entranhas do subsolo e para meu inferno pessoal.
* * *
TAYLOR ABRE A porta para mim, e entro no banco traseiro do carro. Evito o contato visual. Estou totalmente sem jeito e envergonhada. Sou um fracasso absoluto. Eu tinha esperado trazer o meu Cinquenta Tons para a luz, mas isso provou ser uma tarefa além das minhas parcas habilidades. Desesperadamente, tento refrear minhas emoções. Ao entrarmos na Quarta Avenida, estou olhando pela janela com o olhar perdido, e a enormidade do que fiz me submerge. Merda — eu o deixei. O único homem que já amei. O único homem com quem já dormi. Arquejo, sentindo uma dor dilacerante, e a represa se rompe. Lágrimas incontidas me escorrem pelo rosto, e eu as enxugo apressadamente com os dedos, catando os óculos escuros na bolsa. Quando paramos num sinal, Taylor me passa um lenço. Não diz nada, não olha para mim, e eu aceito agradecida.
— Obrigada — murmuro, e este pequeno e discreto ato de bondade é a minha perdição. Recosto-me no luxuoso banco de couro e choro.
* * *
O APARTAMENTO VAZIO e estranho me angustia. Ainda não moro ali tempo suficiente para me sentir em casa. Vou direto para meu quarto, e ali, murchinho, pendurado no pé da minha cama, está um balão triste em forma de helicóptero. Charlie Tango é meu retrato em todos os sentidos. Puxo-o com irritação da grade, arrebentando o fio, e me abraço a ele. Ah — o que foi que eu fiz?