A tais velocidades seriam necessários dez mil anos para percorrer apenas a distância até à estrela mais próxima. No entanto, quando se está congelado a quatro graus abaixo do zero absoluto, dispõe-se de muito tempo. Mas, um belo dia — tinha a certeza disso, nem que fosse dentro de um milhão de anos —, Gilgamesh entraria por acaso noutro sistema solar qualquer. Ou a sua barca fúnebre seria interceptada na escunção entre as estrelas, e outros seres — muito avançados, muito inteligentes — recolheriam o sarcófago a bordo e saberiam o que tinha de ser feito. Aquilo nunca fora realmente tentado antes. Ninguém que jamais vivera na Terra se aproximara tanto do objetivo.
Confiante de que no seu fim estaria o seu princípio, fechou os olhos e cruzou, experimentalmente, os braços no peito, quando os motores ficaram de novo incandescentes, desta vez mais brevemente, e a reluzente nave iniciou com toda a suavidade a sua longa viagem para as estrelas.
Sabe Deus o que estará a acontecer na Terra daqui a milhares de anos, pensou. O problema não era dele. Nunca fora, realmente. Mas ele, ele estaria a dormir, ultracongelado e perfeitamente conservado, lançado no seu sarcófago através do vazio interestelar, ultrapassando os faraós, levando a palma a Alexandre, vencendo Quin em resplendor. Conseguiria a sua própria ressurreição.
CAPÍTULO XXIII
Reprogramação
Não obedecemos a fábulas astuciosamente imaginadas…
mas fomos testemunhas oculares.
Olhai e recordai. Olhai para este céu;
Olhai profunda, profundamente para o limpo ar marinho,
O ilimitado, o término da prece.
Falai agora e falai para a sagrada abóbada.
Que ouvis? Que responde o céu?
Os céus estão ocupados; esta não é a vossa casa.
As linhas telefônicas tinham sido reparadas, as estradas limpas e desimpedidas e foi permitida a representantes cuidadosamente selecionados da imprensa mundial uma vista de olhos às instalações. Alguns repórteres e fotógrafos foram conduzidos através das três aberturas iguais dos benzels, atravessaram a câmara de vácuo e penetraram no interior do dodecaedro. Foram registrados comentários para a televisão, os repórteres sentaram-se nas cadeiras que os Cinco tinham ocupado e falaram ao mundo do malogro daquela primeira tentativa corajosa para ativar a Máquina. Ellie e os seus colegas foram fotografados de longe, para mostrar que estavam vivos e bem, mas por enquanto não seriam concedidas entrevistas nenhumas. O Projeto da Máquina estava a fazer o balanço da situação e a estudar as suas opções futuras. O túnel de Honshu a Hokkaido estava de novo aberto, mas a passagem da Terra para Vega encontrava-se fechada. Eles não tinham testado realmente essa proposição. Ellie perguntava-se se, quando os Cinco abandonassem finalmente o local, o projeto não tentaria pôr de novo os benzels a girar; mas acreditava no que lhe fora dito: a Máquina não voltaria a funcionar, os seres da Terra não voltariam a ter acesso aos túneis. Podíamos fazer pequenas mossas no espaço-tempo, tantas quantas nos apetecesse; não nos serviria de nada se ninguém puxasse do outro lado. Fora-nos dada a possibilidade de um vislumbre, e depois tinham-nos deixado sós, para nos salvarmos a nós próprios. Se fôssemos capazes.
No fim, os Cinco foram autorizados a falar uns com os outros.
Ellie despediu-se sistematicamente deles, um por um. Nenhum a censurou pelas cassettes em branco.
— As imagens das cassettes são gravadas em domínio magnético, em fita — recordou-lhe Vaygay. — Acumulou-se nos benzels um forte campo elétrico e, claro, eles estavam em movimento. Um campo elétrico tempo-variável faz um campo magnético. As equações de Maxwell. Parece-me que foi assim que as suas gravações se apagaram. A culpa não foi sua.
O interrogatório do Vaygay intrigara-o. Não o tinham acusado exatamente, mas sugerido apenas que ele fazia parte de uma conspiração anti-soviética envolvendo cientistas do Ocidente.
— Digo-lhe, Ellie, que a única questão em aberto é a existência de vida inteligente no Politburo.
— E na Casa Branca. Não posso acreditar que a presidente permita que o Kitz leve a sua avante nisto. Ela entregou-se ao Projeto, comprometeu-se nele.
— Este planeta é governado por gente doida. Lembre-se do que têm de fazer para chegar onde estão. A sua perspectiva é tão estreita, tão… breve! Alguns anos. Para os melhores deles, a umas décadas. Só lhes importa o tempo que estão no Poder.
Ellie pensou na Cygnus A.
— Mas eles não têm a certeza de que a nossa história é uma mentira. Não podem prová-lo. Portanto, temos de os convencer. No fundo do seu coração, interrogam-se. «Poderia ser verdade?» Alguns, poucos, até querem que seja verdade. Mas é uma verdade arriscada. Precisam de qualquer coisa vizinha da certeza… E talvez nós possamos fornecê-la. Podemos refinar a teoria gravitacional. Podemos fazer novas observações astronômicas para confirmar o que nos disseram — especialmente quanto ao centro galáctico e a Cygnus A. Eles não vão parar a investigação astronômica. Também podemos estudar o dodecaedro, se nos derem acesso a ele. Nós modificaremos a mente deles, Ellie.
Será difícil fazê-lo se forem todos doidos, pensou ela.
— Não vejo como os governos poderiam convencer as pessoas de que isto foi uma impostura — observou.
— Deveras? Pense nas outras coisas em que eles fizeram as pessoas acreditar. Persuadiram-nos de que só estaremos em segurança se gastarmos toda a nossa riqueza para que toda a gente da Terra possa ser morta num momento quando os governos decidirem que chegou a altura. Parece-me que é difícil fazer as pessoas acreditarem numa coisa tão estúpida. Não, Ellie, eles têm muita habilidade para convencer. Basta-lhes dizer que a Máquina não funciona e que nós enlouquecemos um pouco.
— Não creio que parecêssemos assim tão loucos se contássemos todos a nossa história juntos. Mas talvez você tenha razão. Talvez devamos tentar obter algumas provas primeiro. Vaygay, não haverá problemas consigo quando… regressar?
— Que me podem fazer? Exilar-me em Gorky? Poderia sobreviver a isso; tive o meu dia na praia… Não, estarei em segurança. Você e eu temos um tratado de segurança mútua, Ellie. Enquanto você estiver viva, eles precisarão de mim. E vice-versa, claro. Se a história é verdadeira, gostarão de ter uma testemunha soviética; eventualmente, ainda a contarão, aos gritos, de cima dos telhados. E, como a sua gente, interrogar-se-ão acerca da utilidade militar e econômica de que nós vimos.
— Não importa o que nos digam que façamos. Só importa que permaneçamos vivos. Então contaremos a nossa história — todos os Cinco; discretamente, claro. Ao princípio só àqueles em quem confiamos. Mas essas pessoas contarão a outras. A história propagar-se-á. Não haverá nenhuma maneira de a deter. Mais cedo ou mais tarde, os governos reconhecerão o que nos aconteceu no dodecaedro. E até lá somos apólices de seguro uns dos outros. Ellie, sinto-me muito feliz com tudo isto. Foi a coisa mais formidável que me aconteceu.
— Dê um beijo a Nina, da minha parte — disse ela, momentos antes de ele partir no avião noturno para Moscovo.
Durante o pequeno-almoço perguntou a Xi se estava decepcionado.