— Decepcionado? Ter ido lá — ergueu os olhos na direção do céu —, tê-los visto e estar decepcionado? Sou um órfão da Longa Marcha. Sobrevivi à Revolução Cultural. Tentei cultivar batatas e beterraba sacarina, durante seis anos, à sombra da Grande Muralha. A minha vida inteira tem sido sublevação. Conheço a decepção. Fomos a um banquete e, quando regressamos a casa, à nossa aldeia faminta, sentimo-nos decepcionados por eles não festejarem o nosso regresso? Isso não é decepção. Perdemos uma pequena escaramuça. Estude a… disposição das forças.
Regressaria em breve à China, onde acedera a não fazer quaisquer declarações públicas a respeito do que acontecera na Máquina. Mas voltaria a dirigir a escavação em Xian. O túmulo de Qin esperava por ele. Queria saber até que ponto o imperador se parecia com aquela simulação do outro lado dos túneis.
— Desculpe, sei que isto é impertinente — disse ela, passados momentos —, mas o fato de, de todos nós, só o senhor ter encontrado alguém que… Enfim, em toda a sua vida não houve ninguém que tivesse amado?
Desejou ter formulado a pergunta melhor.
— Todos aqueles a quem amei me foram tirados. Obliterados. Vi os imperadores do século XX chegarem e partirem — respondeu Xi. — Ansiei por conhecer alguém que não pudesse ser revisto, reabilitado, ou censurado. Há somente algumas figuras históricas, poucas, que não podem ser apagadas.
Estava a olhar para o tampo da mesa, a tocar na colher de chá.
— Dediquei a minha vida à Revolução e não estou arrependido. Mas não sei quase nada da minha mãe e do meu pai. Não tenho nenhumas recordações deles. A sua mãe ainda está viva. Você lembra-se do seu pai e voltou a encontrá-lo. Não esqueça quanto é afortunada.
Em Devi, Ellie adivinhou uma mágoa que nunca antes notara. Presumiu que se tratava de uma reação ao ceticismo com que a Diretoria do Projeto e os governos tinham acolhido a sua história. Mas Devi abanou a cabeça.
— Não é muito importante para mim que acreditem ou não em nós. O fundamental é a experiência em si. Transformadora. Ellie, aquilo aconteceu-nos de fato. Foi real. Na primeira noite depois de regressarmos a Hokkaido sonhei que a nossa experiência era um sonho, sabe? Mas não foi, não foi.
«Sim, estou triste. A minha tristeza é… Sabe, lá em cima satisfiz um desejo da vida inteira quando reencontrei Surindar ao fim de tantos anos. Ele era exatamente como eu o recordava, exatamente como sonhava com ele. Mas, quando o vi, quando vi uma simulação tão perfeita, compreendi, soube: este amor era precioso porque me fora roubado, porque eu desistira de tantas coisas para casar com ele. Mais nada. O homem era um pateta. Dez anos com ele, e ter-nos-íamos divorciado. Talvez apenas cinco chegassem. Eu era tão jovem e tola!
— Lamento sinceramente — disse Ellie. — Sei um pouco acerca de chorar um amor perdido.
— Ellie, não compreendeu. Pela primeira vez na minha vida, não choro Surindar. O que choro é a família a que renunciei por amor dele.
Sukhavati iria passar alguns dias a Bombaim e depois visitaria a sua aldeia ancestral, em Tamil Nadu.
— Eventualmente — disse —, será fácil convencermo-nos a nós próprios de que isto foi apenas uma ilusão. Todas as manhãs, quando acordarmos, a nossa experiência estará mais distante, mais delida, será mais como um sonho. Seria melhor para todos nós permanecermos juntos para reforçarmos as nossas recordações. Eles compreenderam esse perigo. Foi por isso que nos levaram para a beira-mar, para um lugar como o nosso próprio planeta, uma realidade que podemos apreender. Não consentirei que ninguém banalize essa experiência. Lembre-se: aconteceu realmente. Não foi um sonho. Ellie, não esqueça.
Tendo em consideração as circunstâncias, Eda estava muito descontraído. Ellie não tardou a compreender porquê. Enquanto ela e Vaygay tinham estado a ser submetidos a prolongados interrogatórios, ele estivera a fazer cálculos.
— Penso que os túneis são pontes Einstein-Rosen — disse. — A relatividade geral admite um tipo de soluções, chamadas buracos de vermes, semelhantes a buracos negros, mas sem nenhuma relação evolutiva — não podem ser gerados, como os buracos negros, pelo colapso gravitacional de uma estrela. Mas o tipo usual de buraco de verme, uma vez feito, expande-se e contrai-se antes de por ele poder passar alguma coisa; exerce correntes de forças desastrosas e exige também — pelo menos do ponto de vista de alguém que ficou atrás — uma infinita quantidade de tempo para ser atravessado.
Ellie não compreendeu como isso poderia constituir grande progresso e pediu-lhe que clarificasse. O problema-chave consistia em manter o buraco de verme aberto. Eda descobrira um tipo de soluções para as suas equações de campo que sugeriam um novo campo macroscópico, uma espécie de tensão que podia ser usada para impedir que um buraco de verme se contraísse completamente. Um buraco assim não apresentaria nenhum dos outros problemas dos buracos negros; teria tensões de correntes muito mais pequenas, acesso em dois sentidos, tempos de trânsito rápidos pelos padrões de medição de um observador exterior e nenhum campo de radiação interior devastador.
— Não sei se o túnel é estável contra pequenas perturbações — esclareceu. — Se não é, eles teriam de construir um sistema de feedback muito complicado para monitorizar e corrigir as instabilidades. Ainda não tenho a certeza de nada disto. Mas, pelo menos, se os túneis podem ser pontes Einstein-Rosen, podemos dar alguma resposta quando nos disserem que tivemos alucinações.
Eda estava ansioso por regressar a Lagos e Ellie via o bilhete verde das Linhas Aéreas Nigerianas a espreitar da algibeira do casaco. Ele perguntava-se se conseguiria interpretar completamente a nova física que a experiência por que tinham passado implicava. Mas confessava-se inseguro, receava não estar à altura da tarefa, sobretudo em virtude daquilo que descrevia como a sua idade avançada para física teórica. Tinha trinta e oito anos. Acima de tudo, disse-lhe, estava desesperado por se reunir à mulher e aos filhos.
Ela abraçou-o e disse-lhe que se sentia orgulhosa por tê-lo conhecido.
— Por quê o pretérito? Voltará a ver-me, com certeza. Ellie — acrescentou, como se fosse uma coisa de que quase se tivesse esquecido, — faz-me um favor? Recorde tudo quanto aconteceu, todos os pormenores, e escreva-o. E depois mande-mo. A nossa experiência representa dados experimentais. Um de nós pode ter visto qualquer coisa que escapou aos outros, qualquer coisa essencial para uma compreensão profunda do que aconteceu. Mande-me o que escrever. Pedi o mesmo aos outros.
Acenou, pegou na pasta velha e entrou no carro do Projeto que esperava.
Estavam a partir, cada um para o seu país, e isso dava a Ellie a impressão de que a sua própria família estava a ser separada, fraturada, dispersa. Ela também achara a experiência transformadora. Como poderia não achar? Fora exorcizado um demônio. Vários demônios. E, precisamente quando se sentia mais capaz de amar do que nunca, descobria-se sozinha.
Levaram-na das instalações de helicóptero. No longo vôo para Washington no avião governamental dormiu tão profundamente que tiveram de a sacudir, para a acordar, quando a gente da Casa Branca entrou a bordo — logo após o aparelho ter aterrado por breves momentos numa pista isolada de Hickam Field, no Havai.
Tinham chegado a um acordo. Ela podia voltar para Argus, embora já não como diretora, e dedicar-se a qualquer problema científico que desejasse. Teria lá, se quisesse, um lugar vitalício.
— Não estamos a ser desrazoáveis — dissera finalmente Kitz ao aceitar o compromisso. — Volte com uma prova sólida, concreta, qualquer coisa verdadeiramente convincente, e juntar-nos-emos a si para fazer o anúncio. Diremos que lhe pedimos que guardasse segredo da sua história até podermos ter a certeza absoluta. Dentro dos limites do razoável, apoiaremos qualquer investigação que queira fazer. Pelo contrário, se anunciássemos a história agora, haveria uma onda inicial de entusiasmo e depois os céticos começariam a criticar. Seria um embaraço para si e um embaraço para nós. É muito melhor reunir as provas, se conseguir.