- Vou, sim.
- Em breve.
- Tchauzinho! - Toni se desconectou.
Em seu trabalho, na manhã seguinte, Toni ouviu Shane Miller conversando com Ashley Paterson e pensou, que diabo ele vê nela? Ela é um bagulho! A seu ver, Ashley era uma solteirona frustrada, a dona Maria Certinha em pessoa. Ela não faz a menor idéia do que seja se divertir, pensou Toni. Não aprovava nada na outra. Ashley era um caso perdido, alguém que gostava de ficar em casa à noite, lendo um livro ou assistindo a documentários sobre História e à CNN. Não se interessava por esportes. Uma chata! Nunca tinha entrado num chat room. Encontrar estranhos pelo computador era algo que Ashley jamais faria, a antipática. Ela nem sabe o que está perdendo, pensou Toni. Sem o chat room, eu jamais teria conhecido Jean Claude!
Toni pensou no quanto sua mãe teria odiado a Internet. Mas sua mãe havia odiado tudo mesmo! Só tinha duas formas de se comunicar: gritando ou se lamuriando. Toni jamais conseguia agradá-la. Você não faz nada certo, hein? Mas que menina idiota! Ora, a mãe tinha gritado demais com ela. Toni pensou no terrível acidente no qual a mãe morreu. Ainda podia ouvir seus gritos de socorro. A lembrança a fez sorrir.
"É um centavo por um novelo de lã.
Um centavo por uma agulha, a toda hora!
Assim que o dinheiro se vai.
E a lontra - pluft! - foi embora".
Capítulo Três
Em outro lugar, em outra época, Alette Peters poderia ter sido uma artista de sucesso. Até onde podia se lembrar, seus sentidos viviam ligados às nuances de cor. Ela podia ver as cores, sentir o cheiro das cores, ouvir o som das cores.
A voz do pai era azul e, às vezes, vermelha.
A voz da mãe era marrom-escura.
A voz da professora era amarela.
A voz do feirante era púrpura.
O barulho do vento nas árvores era verde.
O som da água corrente era cinza.
Alette Peters tinha vinte anos de idade. Podia ter um aspecto normal, ser atraente, ou estonteantemente linda, dependendo do seu humor, ou de como estivesse se sentindo consigo mesma.
Porém, jamais era simplesmente bonita. Parte de seu charme residia no fato de nunca se dar conta de sua aparência. Era tímida, de fala doce e uma gentileza quase anacrônica.
Alette nascera em Roma e tinha um melodioso sotaque italiano. Adorava todos os aspectos de Roma. Esteve no alto dos Degraus Espanhóis e, olhando a vista, sentiu que a cidade lhe pertencia. Ao admirar os templos e o gigantesco Coliseu, soube que pertencia àquela época. Passeou pela Piazza Navona, ouviu a música das águas na fonte dos Quatro Rios, e visitou a Piazza Venezia, com seu monumento em forma de bolo de casamento ao estilo Vítor Emanuel II. Passou infindáveis horas na basílica de São Pedro, no museu do Vaticano e na galeria Borghese, apreciando as obras atemporais de Raphael, Fra Bartolommeo, Andrea Del Sarto e Pontormo. Tais talentos tanto a transfixavam quanto a frustravam. Gostaria de ter nascido no século XVI e de tê-los conhecido. Eles eram mais reais para Alette do que os transeuntes nas ruas. Ela desejava ardentemente ser uma artista.
Podia ouvir a voz marrom-escura da mãe: Você está desperdiçando papel e tinta. Não tem talento.
A mudança para a Califórnia foi desestabilizadora a princípio. Alette ficou apreensiva quanto à sua adaptação, mas Cupertino acabou se revelando uma agradável surpresa. Ela apreciava a privacidade que a cidadezinha podia lhe propiciar e gostava de trabalhar na Corporação Global de Computação Gráfica. Não havia grandes galerias de arte em Cupertino, mas, nos finais de semana, Alette pegava o carro e ia visitar as de São Francisco.
- Porquê tanto interesse por essas coisas? - perguntou-lhe Toni Prescott. - Venha ao J. P Mulligan's comigo e divirta-se um pouco.
- Você não liga para o lado artístico da vida?
Toni riu.
- Claro! Ainda mais quando o artista está ao meu lado!
Só havia uma nuvem pairando sobre a vida de Alette Peters. Ela era maníaco-depressiva. Sofria de anomia, uma sensação de alienação do resto do mundo. Suas alterações de humor sempre a pegavam desprevenida, e, num instante, ela passava de uma alegre euforia para uma tristeza desesperada. Não controlava suas emoções.
Toni era a única pessoa com quem Alette discutia seus problemas. A amiga tinha uma solução para tudo, que em geral era:
- Vamos sair para nos divertir.
O assunto preferido de Toni era Ashley Paterson. Ela estava assistindo à conversa de Ashley com Shane Miller.
- Veja só aquela babacona - falou Toni em tom de desprezo. - É a rainha do gelo.
Alette assentiu.
- Séria demais. Alguém bem que poderia ensiná-la a rir.
Toni caçoou:
- Alguém bem que poderia ensiná-la a trepar!
Uma noite por semana, Alette ia à missão para os sem-teto de São Francisco e ajudava a servir o jantar. Havia uma velhinha em particular, que aguardava ansiosamente as vindas de Alette. Ela andava de cadeira de rodas e Alette sempre a empurrava até uma mesa e levava seu prato de comida quente.
A mulher dizia, agradecida:
- Minha querida, se eu tivesse uma filha, gostaria que ela fosse exatamente igual a você!
Alette apertava-lhe a mão.
- Puxa, mas que elogio! Obrigada! - E sua voz interna dizia: Se você tivesse uma filha, ela seria uma porcalhona igualzinha como você. E Alette ficava horrorizada com os seus pensamentos. Era como se outra pessoa dentro dela estivesse dizendo aquelas palavras. Isso acontecia sempre.
Alette estava fazendo compras com Betty Hardy, uma mulher que freqüentava a mesma igreja que ela. As duas pararam em frente a uma loja de departamentos. Betty estava admirando um vestido na vitrine.
- Que lindo hein?
- Maravilhoso - falou Alette. É o vestido mais feio que já vi na vida. Perfeito para você.
Certa noite, Alette foi jantar com Ronald, sacristão da igreja.
- Eu adoro estar na sua companhia, Alette. Vamos sair mais vezes.
Ela abriu um sorriso tímido.
- Eu gostaria muito. - E pensou: Nonfaccia, lo stupido. Talvez em outra encarnação seja! E mais uma vez se sentiu horrorizada. O que há de errado comigo? Mas ela não tinha resposta.
Os menores deslizes, intencionais ou não, deixavam Alette enfurecida. Indo para o trabalho certa manhã, um carro cortou-lhe a dianteira. Ela trincou os dentes e pensou: Vou matar esse canalha. O homem acenou-lhe, desculpando-se, e Alette abriu-lhe um sorriso simpático. Mas a raiva ainda estava presente nela.
Quando baixava a nuvem negra, Alette imaginava as pessoas tendo ataques cardíacos nas ruas, ou sendo atropeladas, ou sendo assaltadas e assassinadas. Repassava as cenas em sua cabeça com uma vivacidade real. Momentos depois se enchiam de vergonha.
Nos seus dias bons, Alette era uma pessoa completamente diferente. Gentil de verdade, solidária, que gostava de ajudar a todos. A única coisa que estragava sua felicidade era saber que as trevas retornariam, e que ela se perderia nelas.
Todo domingo de manhã, Alette ia à igreja. Os fiéis organizavam-se em grupos de voluntários para alimentar os pobres, ensinar educação artística após o horário escolar e dar aulas particulares para os alunos mais fracos. Alette se responsabilizava pela catequese dominical e ajudava no berçário. Sempre se oferecia para todas as atividades de caridade e reservava-lhes o máximo de tempo que podia. Ela gostava principalmente de dar aulas de pintura para os jovens.
Um certo domingo, a igreja promoveu uma feira para levantar fundos, e Alette levou alguns de seus próprios quadros para vender em benefício do movimento. O pastor Frank Selvaggio os viu e ficou deslumbrado.
- Mas que... Que quadros lindos! Você deveria colocá-los à venda numa galeria.
Alette corou.
- Ah, não! Isso não. Eu só pinto para me distrair.
A feira estava abarrotada de gente se divertindo. Os devotos haviam levado seus amigos e parentes, e havia barracas de jogos e também de artesanato. As atrações variavam desde quitutes, bolos lindamente decorados e geléias caseiras em belíssimos potes, até colchas de retalhos feitas à mão e brinquedos esculpidos em madeira. As pessoas iam de uma barraca para outra, provando os doces, comprando coisas que não teriam uso algum no dia seguinte.