“Foi também nessa época que se assistiu ao nascimento da Magia. Três dos filhos dos deuses cresceram juntos, e unia-os laços invulgarmente fortes. Solinari, filho de Paladino e Mishakal; Nuitari, filho de Takhisis e Sargonnas, e Lunitari, filha de Gileano. Todos os deuses são dotados do poder da Magia, mas nestes três o mesmo era realçado pelo amor à Magia e a dedicação a tal arte. O que criou um vínculo entre eles, tão diferentes em quase todos os outros aspectos.
“Quando ocorreu a Guerra de Todos os Santos, o trio foi pressionado pelos vários parentes no sentido de tomarem um ou outro partido. Os três primos receavam que a guerra destruísse aquilo que mais amavam: a Magia. Jurando ser verdadeiros para com a Magia e fiéis uns aos outros, abandonaram o Panteão dos Deuses. Assumindo a forma mortal, percorreram a face de Krynn.
“Cada primo encontrou, entre os mortais, um seguidor, e a este concederam o dom da Magia. Tal dádiva podia ser transmitida a outros mortais que, por seu turno, podiam, em caso de necessidade, invocar os três deuses em seu auxílio. Depois, os primos abandonaram Krynn. No entanto, mantiveram-se por perto, voluteando nos céus e vigiando com olhos de águia os mortais que faziam uso dos dons concedidos. Entre os mortais, esses “Olhos” são conhecidos pelas três luas de Krynn: a Solinari, prateada, a Lunitari, vermelha, e a invisível (exceto para os seus seguidores) Nuitari.
“Nós, os Irdas, somos dotados de poderes mágicos extraordinariamente fortes, mas não sabemos ao certo de onde emana o poder. Não nos une afinidades com os feiticeiros de Krynn e, na realidade, somos considerados “renegados”. Vocês nos encaram como uma ameaça, um perigo para as vossas ordens. A nossa magia constitui um dos inúmeros motivos que nos levam a evitar o contato com outras espécies. A magia é crucial para a nossa sobrevivência. Todos os Irdas nascem com ela. Por assim dizer, a magia corre-nos nas veias e nos é tão inata como os outros sentidos: vista, paladar, audição, tato e olfato. Alguém nos pede que expliquemos o dom da vista? Do mesmo modo, não vejo motivos para o mundo solicitar que justifiquemos a nossa atuação em coisas que, aos seus olhos, constituem milagres.
“Prosseguindo a História da Criação.
“O novo mundo era jovem e rebelde, tal como os espíritos dos Mortais que o habitavam. Os Elfos trabalhavam laboriosamente e dominavam o seu quinhão do mundo. Os Ogros aprenderam a adaptar-se ao que lhes correspondia. Os Humanos procuravam aperfeiçoar o seu. Reorx, um deus solitário, ofereceu-se para ajudá-los. Afirma-se que as únicas ocasiões em que Reorx se sente realmente feliz é quando anda a imiscuir-se e a interferir na vida dos Mortais.
“Reorx ensinou a um grupo de humanos inúmeras aptidões, que incluíam a técnica de forjar o aço. Tanto os Elfos como os Ogros cobiçavam o metal, pois desconheciam a forma de produzi-lo. Apresentaram-se junto dos humanos, a fim de comprarem espadas, facas e utensílios de metal. O orgulho dos humanos em relação às suas capacidades foi engrandecendo, e começaram a pavonear-se. O orgulho fez com que esquecessem de prestar homenagem a Reorx, seu mestre. Chegavam mesmo a evitar o deus, quando este os procurava, zombando por ser muito mais baixo do que eles e escarnecendo do interesse que demonstrava no mister que lhes proporcionava tantas riquezas.
“Encolerizado, Reorx amaldiçoou esses humanos. Sonegou-lhes as aptidões que lhes conferira e deixou-lhes apenas o desejo de inventar, arquitetar, construir. Decretou que esses humanos fossem baixos, mirrados e ridicularizados pelas outras raças. Transformou-os em Gnomos.
“Durante essa época, conhecida por a Idade do Crepúsculo, o equilíbrio do Mundo — que fora relativamente estável — começou a alterar-se. Insatisfeitos com o que tinham, os Humanos começaram a cobiçar os bens dos vizinhos. Instigados por Takhisis, os Ogros aspiravam o poder. Os Elfos pretendiam que os deixassem em paz, e estavam dispostos a lutar para preservar o seu isolamento.
“Hiddukel era um dos deuses do Além, trazido para este plano por Takhisis no sentido de reforçar a ascendência desta sobre os Humanos. Hiddukel é comerciante. Adora negociar e trocar gêneros, e é extremamente bom no que faz. Viu, no equilíbrio periclitante, uma forma de reforçar o seu próprio poder. A guerra seria boa para os negócios, pois implicava o aumento da produção de armas, armaduras, comida para alimentar os exércitos, e assim por diante. Visto ser igualmente traficante das almas dos mortos, também nessa área Hiddukel obteria lucros apreciáveis.
“Na mira de desencadear mais cataclismos, Hiddukel apresentou-se junto de Chislev, deusa dos bosques e da Natureza, e usando de toda a persuasão convenceu-a da iminência da catástrofe.
“— É uma questão de tempo até a guerra eclodir — disse, em tom lamuriento. — E o que provocará no meio ambiente? As florestas serão arrasadas para se construírem torres de fortalezas, as árvores novas serão transformadas em arcos e flechas, os campos dizimados ou incendiados. Urge, de uma vez por todas, darmos fim a estas querelas entre as raças. Para o bem da Natureza, é evidente.
“— E em tudo isso, qual será o teu lucro? — inquiriu Chislev. — Não consigo imaginar-te interessado no bem-estar dos coelhinhos bebês.
“— Ninguém me leva a sério quando afirmo possuir um coração — lamuriou-se Hiddukel.
“— É porque se torna difícil enxergá-lo sob a camada untuosa das tuas palavras — retorquiu Chislev.
“— Quer mesmo saber? A guerra será extremamente perniciosa para os mercados financeiros. O valor do ouro descerá a pique, tornando-o quase inútil. Se os mercados forem invadidos, tal impossibilitará o escoamento dos produtos dos agricultores. E, eu adoro coelhos.
“— Talvez guisados — replicou Chislev, com um suspiro. — No entanto, dou-lhe uma certa razão. Tenho acompanhado o crescente tumulto entre as raças, o que também me deixa preocupada. Falei com Gileano, mas sabe como ele é! Nunca levanta os olhos daquele livro! Passa o tempo a escrever, a escrever, a escrever!
“— Tentei avistar-me com Takhisis — disse Hiddukel, com uma fungadela. — Ai de mim! Ou se ausenta com o Sargonnas para ver os minotauros escoicearem-se uns as outros, ou está ocupada a provocar pragas, fome, inundações. Já não tem tempo para nós.
“— O que você sugere que façamos? Poderia jurar que tem um plano.
“— Não tenho sempre, minha inflamada amiguinha das árvores? Se a neutralidade constituísse a força dominante no mundo, então o equilíbrio permaneceria constante, sem nunca se alterar. Concorda?
“— Acho que sim... — respondeu Chislev em tom circunspecto, sem confiar em Hiddukel, mas incapaz de rebater a questão. — Porém, não entendo o que...
“— Ah! Vá falar com Reorx. Peça-lhe que crie uma jóia que contenha em si a própria essência da neutralidade. Essa pedra preciosa funcionará como uma âncora para a posição neutra. A neutralidade se converterá na força dominante em Krynn, prevalecendo sobre os dois extremos opostos. Ficarão restringidos ao centro, incapazes de se apartarem dele...
“— E, uma vez criada, que faremos nós com essa pedra preciosa? Daremos a ti para que a guarde? — Chislev era uma deusa gentil, mas com tendência para o sarcasmo, em especial quando se tratava de Hiddukel.
“— Céus! Não! — Hiddukel pareceu aterrorizado. — E eu lá iria querer uma responsabilidade dessas! Dê a um dos teus para guardá-la. Seria a atitude mais sensata, não concorda?
“Chislev olhou intensamente para Hiddukel, mas este suportou o escrutínio com a maior das canduras, revelando uma ansiedade genuína quanto ao destino do mundo. Afirma-se que a própria Rainha Takhisis saiu derrotada em inúmeras negociações com Hiddukel.