Deixando cair o bastão num canto, como se se tratasse de coisa sem valor ou importância, Palin fingiu uma grande relutância em retirar e apresentar os alforjes e os poucos estojos contendo pergaminhos que trazia. Espalhou-os em frente do Cavaleiro Cinzento, que não tocou em nada. Murmurando algumas palavras, lançou sobre os mesmos um encantamento.
Os alforjes e os pergaminhos começaram a irradiar um clarão fantasmagórico, que, em alguns, assumia laivos avermelhados.
Satisfeito por constatar que eram todos mágicos, o Cavaleiro Cinzento ordenou a Palin que esvaziasse sobre a mesa o conteúdo dos alforjes e dos estojos.
Palin esboçou um leve protesto, mas fez o que o outro lhe ordenava. Pelo tampo da mesa rolaram anéis, incluindo o dado por Dalamar. Retirou os pergaminhos, desenrolou-os e permitiu que o Cavaleiro Cinzento desse uma olhada pelos encantamentos. Entretanto, ia sentindo crescer dentro de si a cólera perante o tratamento recebido, assim como a preocupação.
O que aconteceria quando o Cavaleiro Cinzento concentrasse a sua atenção no Bastão de Magius?
Sub-repticiamente, Palin relanceou o olhar pela loja, na esperança de descobrir algo para usar como arma. Os broches e outros objetos encantados encontravam-se fechados em estojos e sem dúvida guardados por encantamentos mágicos. Não fazia idéia do efeito que produziam, podia muito bem dar-se o caso de agarrar em algum anel que fosse mais prejudicial para ele do que para o Cavaleiro Cinzento. O mesmo acontecia com os pergaminhos e os livros de encantamento. Não tinha tempo para folheá-los.
Se não houver mais nada, ainda posso dar-lhe com um boião na cabeça, decidiu Palin com ar soturno e escolheu o que iria agarrar.
O cavaleiro estava de cabeça baixa, examinando atentamente o conteúdo de um dos pequenos livros de encantamentos de Palin.
Palin começou a dirigir-se para as prateleiras e preparava-se para estender a mão e agarrar o boião, quando o Cavaleiro Cinzento levantou a cabeça.
— Oh, está aí! Que faz nesse lugar?
— Só vendo se esta manjerona era fresca — respondeu Palin, retirando o boião da prateleira. Retirando a rolha, cheirou. — Que bom. Quer cheirar?
Desconfiado, o Cavaleiro Cinzento Semicerrou os olhos.
— Pouse já o boião e venha aqui. Vou ficar com isso. — Indicou um grande monte de pergaminhos, anéis, incluindo o de Dalamar, e outros objetos. — Estes... — acrescentou, apontando para o livro de encantamento, para uma bolsa com areia e outra com guano de morcego — pode guardá-lo.
Corando de raiva, Palin ia protestar, mas o Cavaleiro Cinzento virou-se e pegou no bastão.
— Ora, vamos lá ver esta coisa — disse.
— Não passa de um cajado de viagem comum — disse Palin, quase sem poder falar, pois sentia um nó na garganta. — Decerto já constatou que sou de baixa categoria. O que eu faria com um bastão mágico?
— Realmente, o quê? Mas trata-se de um adorno muito rebuscado para servir de cajado... uma garra de dragão segurnado um cristal. Não se importa que o examine mais de perto, não é?
O Cavaleiro Cinzento proferiu umas palavras e lançou o encantamento que revelaria as propriedades mágicas do bastão, tal como acontecera com todo o resto que Palin trazia consigo.
Palin ficou tenso, à espera de ver o clarão feérico derramar-se sobre o bastão. Quando o cavaleiro se preparava para tocá-lo, Palin estava prestes a atirar-se ao homem e jogá-lo ao chão.
O bastão não se mexeu.
Atônito, Palin ficou sem respiração. O Bastão de Magius, um dos artefatos arcanos mais poderosos de todo o território de Krynn, mantinha-se atirado no canto, tão simples e inocente como qualquer aro kender.
O Cavaleiro Cinzento franziu o cenho. Tinha certeza de que o bastão era mágico, mas não iria admitir que duvidava da sua própria fórmula de encantamento. Olhou desconfiado para Palin, julgando que o jovem mago possivelmente se antecipara a ele e pronunciara alguma contra-fórmula.
Palin continuava com as mãos enfiadas nas mangas das vestes.
— Eu avisei — disse, em tom depreciativo.
— Realmente foi — replicou o Cavaleiro Cinzento. Olhou fixamente para o bastão, era evidente que tentava lançar de novo o encantamento, mas deve ter percebido que possivelmente faria figura de tolo. Limitou-se a ralhar: — Rapazinho, um bastão tão chique como este pode metê-lo em confusão. Se teimar em brincar de feiticeiro, aguarde até à Noite do Olho. Pelo menos é capaz de conseguir um bolinho.
Palin sentiu a cara arder com o insulto. Contudo, não se atreveu a dizer uma palavra. Engolindo o orgulho, reconfortou-o imaginar a expressão do rosto do cavaleiro se viesse a saber algum dia que tivera na mão o famoso Bastão de Magius e o largara.
— Assine o seu nome — disse o Cavaleiro Cinzento, empurrando o livro para Palin.
Erguendo a pena de escrever, Palin preparava-se para obedecer, quando o ruído de passos, o roçar de vestes e o aroma carregado de algum perfume caro o fizeram virar a cabeça.
Entrou na loja uma mulher — uma das mais bonitas e exóticas que Palin jamais vira. Envergava vestes vermelhas, caras, feitas de seda e veludo e bordadas a ouro. O perfume servia para dissimular os odores ocasionalmente desagradáveis dos componentes de encantamento que transportava em bolsas de seda, penduradas numa corrente de prata e couro que lhe cingia a cintura. Era estonteante, poderosa, misteriosa e, à sua chegada, até o Cavaleiro Cinzento, endireitando-se, lhe dirigiu uma vênia.
Fez uma pausa e olhou para Palin com ar curioso.
— Como tem passado, Mestre Mago? Sou Jenna, a proprietária desta loja. Peço desculpas por não estar aqui quando chegou. Fui chamada à casa do lorde. Um dos servos quebrou uma jarra valiosa e pediram-me para consertá-la. Uma tarefa menor e que, em circunstâncias normais recusaria, mas atualmente restam tão poucos mágicos na cidade! Em que posso servi-lo?
— Dama Jenna — respondeu Palin, com assinalável admiração —, sou Pal...
— Palas! Palas Margoryle! — Jenna avançou apressadamente e puxou-o pela mão. — Meu caro jovem, deveria tê-lo reconhecido logo! Mas foi há tanto tempo, e você mudou. Quando foi a última vez que nos encontramos? Há quase cinco anos. Durante o Teste. E aqui está você, para a sua sessão de escrita de pergaminhos. Veio cedo, mas não faz mal. Hoje em dia, o negócio está fraco — acrescentou, dardejando o Cavaleiro Cinzento com um ar gélido.
Jenna apertou o braço de Palin e começou a conduzi-lo para a parte mais recuada da loja, separada do resto pela cortina.
— Minha Dama, ele ainda não assinou o livro — observou o Cavaleiro Cinzento.
Jenna parou e dardejou Palin com um olhar de advertência que lhe gelou o sangue.
— Ah, sim, temos que assinar o livro! — disse, em tom malicioso, virando-se. — Se não for assim, como os Cavaleiros de Takhisis podem manter um registro dos que vêm me visitar e do que compram? Já poucos vêm comprar o que quer que seja. Não tarda serei destituída e então, ninguém mais terá que assinar o livro. Ah! Vejam! Alguém derramou a manjerona. Palas, ajude-me a limpar isto.
Palin obedeceu e começou logo a limpar as folhas secas que espalhara. Ajoelhando-se para ajudá-lo, Jenna murmurou:
— Andam à sua procura! Têm um mandato de captura!
Palin estremeceu, quase derramando de novo as folhas, mas conseguiu enfiá-las no boião. Jenna tapou-o com a rolha e voltou a colocá-lo na prateleira.
— Palas, vá assinar o livro e apresse-se. Estou no laboratório. Passe por aquelas cortinas e desça as escadas.
Dito isto, Jenna passou pelas cortinas e Palin ouviu-a descer as escadas. Aliviado do nervosismo, ou da proximidade dela, ou de ambas as coisas, escreveu desajeitadamente o nome falso e, ao terminar, deixou um borrão de tinta. Feito isto, sob o escrutínio desconfiado do Cavaleiro Cinzento, Palin atravessou as cortinas e quase rolou de cabeça pelas escadas que se formavam inesperadamente diante de si.