Em seguida, fez menção de correr a cortina.
— Deixe-a aberta — indicou-lhe o Cavaleiro Cinzento, que foi se postar no alto das escadas, de onde podia avistar o laboratório e ao mesmo tempo, vigiar a porta da frente.
Palin sentou-se junto de Jenna, que fora buscar uma tabuinha feita de cera.
— São evidentes as vantagens de escrever fórmulas mágicas nos pergaminhos — começou, falando em voz alta e com uma entoação didática.
— Não nos obriga a memorizar antes o encantamento e, deste modo, podemos utilizá-lo sempre que desejamos. O ato de escrever determinados encantamentos, em particular os complexos, permite-nos ter a mente livre para a memorização de outros. A principal desvantagem reside na dificuldade em escrever o encantamento, de longe pior do que pronunciá-lo. Porque quando o escrevemos, temos não só de pronunciar as palavras enquanto as escrevemos como também delinear as letras com perfeição. Uma distração e o encantamento não atua.
— Claro que hoje não iremos verdadeiramente escrever encantamentos. O teu grau de estudos não é bastante avançado para isso. Hoje praticaremos a delineação das letras. Escreveremos na cera, para poder apagar eventuais erros. Eu mostro como se faz.
Pegando num estilete e fazendo pressão na cera, Jenna começou a traçar letras. Palin, que aprendera tudo isto há anos e era, na realidade, muito apto a preparar pergaminhos, prestava pouca atenção. Estava furioso consigo mesmo. É evidente que os cavaleiros andavam no seu encalço. Fora um louco em não considerar tal possibilidade.
Jenna, que o olhava com ar soturno, deu-lhe uma cotovelada e apontou para a tabuinha.
— Vamos, copie o que eu escrevi.
Palin pegou no estilete, olhou para as letras, voltou a examiná-las, e por fim compreendeu o que se passava. Jenna não estivera escrevendo magia. O jovem leu o seguinte: Dalamar avisou-me da tua vinda. Tenho andado à procura de Usha. Acredito que se encontra ainda em Palanthas mas, não posso assegurar onde. Pouco posso fazer. Sou constantemente vigiada.
Vendo que Palin lera a mensagem, Jenna apagou-a.
Palin escreveu: Como poderei encontrá-la?
Jenna respondeu: É muito perigoso andar vagueando pela cidade. Os cavaleiros encurralaram-nos numa cintura de ferro. Patrulhas, postos de controle. Os cidadãos têm que apresentar os documentos exigidos. Mas não se desespere. O meu agente anda à procura dela. Comunicou-me que anda por perto e hoje com certeza me dará notícias.
— Mas, que silêncio por essas bandas — observou o Cavaleiro Cinzento, do alto das escadas, espreitando-os.
— Que é que esperava? Estamos estudando — replicou Jenna em tom contundente.
Um sininho, pendurado do teto por um fio de seda, retiniu três vezes. Jenna não se incomodou em virar-se.
— Entrou algum cliente? Diga-lhe que já vou.
— Senhora, não sou seu criado — replicou o Cavaleiro Cinzento em tom cáustico.
— Então, a porta está aberta, pode ir embora — atirou ela, apagando o que escrevera na cera. — Pode ser o meu agente — acrescentou, em voz baixa, a Palin.
Ouviram as pesadas botas do cavaleiro atravessando o chão da loja. Depois, alarmaram-se ao ouvir um grito e ruídos de luta.
— É ele — disse Jenna. Levantando-se, subiu apressadamente as escadas. Palin, que seguia logo atrás, chocou com ela quando Jenna se deteve no alto e lhe murmurou:
— Finja que não o conhece. Nem uma palavra. Deixe que eu fale.
Espantado, Palin aquiesceu. Jenna entrou na loja.
— O que se passa? — inquiriu.
— Um kender — respondeu o Cavaleiro Cinzento em tom soturno.
— Isso estou vendo — retrucou Jenna.
Palin ficou plantado olhando e ocorreu-lhe — bem a tempo — que pressupostamente não conhecia aquela pessoa.
Estrebuchando nas mãos do cavaleiro encontrava-se Tasslehoff Pés Ligeiros.
6
O agente de Jenna.
O Ganso e a Ganso.
Uma gasosa de gengibre ótima.
— Ai, ai! Isso machuca! Como se sentiria se alguém quase te arrancasse o braço? Já te disse que a Dama Jenna quer falar comigo! Sou agente dela. Oops! Credo! Peço muitas desculpas. Não era minha intenção te morder! Acontece que a sua mão foi de encontro aos meus dentes. Doeu muito? Eu... Eei! Eei! Pára com isso! Está arrepiando meu cabelo! Socorro! Socorro!
— Pelo amor de Gileano, largue-o! — exclamou Jenna. O cavaleiro agarrara Tas pelo penacho.
— Senhora, não vai querer um kender na tua loja — papagueou o cavaleiro.
— A loja é minha... pelo menos por ora — retrucou Jenna. — Até vocês, cavaleiros, me retirarem o negócio e tomarem conta dele. Por enquanto, trata-se do meu negócio e o gerencio como me apetecer. Largue o kender.
O cavaleiro obedeceu, com evidente desagrado.
— Muito bem, Senhora, mas é responsável pelas conseqüências.
— Se eu fosse você, subiria ao meu apartamento e lavaria essa ferida — avisou Jenna. — Ou talvez deseje que seja um dos teus sacerdotes a tratá-lo. O kender pode ter raiva.
— Não me surpreenderia — replicou friamente o cavaleiro. — Senhora, lembre-se disto... a sua loja permanece aberta por deferência dos Cavaleiros de Takhisis. Se quiséssemos, poderíamos fechá-la agora mesmo e não haveria uma pessoa que pudesse nos deter. Na verdade, não seriam poucos os vizinhos a, possivelmente, agradecer-nos. De modo que não me faça perder a paciência.
Jenna sacudiu a cabeça, num gesto de desdém, mas não respondeu. O Cavaleiro Cinzento subiu pesadamente as escadas, torcendo a mão ferida. Tasslehoff retraiu-se e esfregou a cabeça.
— Os meus olhos ficaram vesgos, como os do Dalamar? Parece-me que ficaram. Ele puxou com tanta força que quase me arrancou o escalpe e as pálpebras também. Não é um homem simpático — declarou Tasslehoff e em seguida, inclinando-se para Jenna, acrescentou em voz baixa: — Eu disse uma mentira. Mordi por querer mesmo.
— Estava pedindo — respondeu Jenna com um sorriso. — Mas veja se tem mais cuidado na próxima. O meu raio de proteção termina aqui. Não quero pagar mais nenhuma fiança para te tirar da prisão. Encontrou o colar que eu procurava? — perguntou em voz alta, para poder ser ouvida do alto das escadas.
Tas fitou Palin, dirigiu-lhe várias piscadelas de olho e também em voz estridente, respondeu:
— Sim, Dama Jenna. Descobri-o! Sei exatamente onde se encontra!
— Não o tocou, não é? — A voz de Jenna parecia ansiosa. — Nem deixou que o dono percebesse que era valioso?
— O dono nunca me viu. E o colar também não — acrescentou Tas em tom confidencial.
Ouvindo esta declaração, Jenna franziu o cenho e abanou a cabeça. Virando-se para Palin, disse:
— Mestre Mago, parece que hoje não há meio de terminarmos a nossa lição. Chegou a hora da meditação da tarde. Quer me fazer o favor de adquirir por mim o tal colar? É mágico, mas o dono não sabe, não faz idéia do seu verdadeiro valor.
Por esta altura, Palin já adivinhara que o colar devia ser Usha. Só de pensar que voltaria a vê-la, sentiu o coração palpitar rapidamente e o sangue percorrido por uma quente e agradável sensação de formigamento. Toda a noção do perigo dissipou-se, ou pelo menos recuou até aos recessos da sua alma.
— Dama Jenna, para mim seria uma honra obter esse colar para ti — respondeu, lutando para simular indiferença, embora, com a excitação, quase gritasse. — Onde o encontro?