Fechou os olhos e concentrou-se. Já não se encontrava nos esgotos de Palanthas. Já não fugia da ameaça dos cavaleiros. Já não tinha pressa. Já não sentia ao seu lado a mulher que desejava possuir mesmo à custa da própria vida. Todo ele agora era magia.
Palin desatou a presilha de couro e, com gestos lentos, começou a movê-la em círculos, diretamente por baixo da grade. Ao mesmo tempo, pronunciou as palavras mágicas, imprimindo a cada sílaba a ênfase adequada. E, enquanto falava, aguardou, tenso, nervoso e em ânsia, o afluxo de calor que, concentrando-se no coração, irradiaria por todo o corpo. O calor significava que a magia se apossara dele e que, através dele, fora desencadeada. O calor provocava uma paixão descontrolada, era inebriante, e só uns poucos eleitos o sentiam.
Sentiu-o crescer e experimentou o júbilo intenso, o arroubo do poder a liquefazer-se no sangue. A magia cintilava e dançava dentro de si, como as bolhinhas de vinho, subindo à tona do seu ser. A fórmula mágica era simples, qualquer mago de baixa categoria conseguia executá-la. Contudo, até o encantamento mais simples implicava esta recompensa, cobrava este preço, Depois de pronunciadas as palavras, as bolhas rebentaram. O calor foi se desvanecendo, dando lugar ao cansaço, à depressão e ao desejo ardente de experimentar de novo a sensação.
Palin exultava agora com a sua arte. Fazendo deslocar a pulseira sob o gradeamento, enunciou as palavras. A grade começou a elevar-se devagarinho no ar. Palin controlava a levitação mediante movimentos com a mão. Sempre que executava um círculo completo, a grade movia-se mais um milímetro. Quando ficou a uma altura que permitia a passagem de uma pessoa, Palin interrompeu os movimentos. A grade ficou suspensa no ar, imóvel.
— Tas! Usha! — chamou baixinho. — Agora! Depressa!
Tas subiu atabalhoadamente, fazendo balançar os alforjes à sua volta. Usha precedeu-o. Palin rastejou através da abertura, o que não constituía tarefa fácil, atendendo a que se via obrigado a manter o tempo todo o fio de couro sob o gradeamento. Na aia, agachou-se, com a mão por baixo da grade, enquanto Tas saía precipitadamente do esgoto.
— Fique de vigia! — ordenou Palin ao kender, que atravessou a rua correndo e se agachou atrás de um arbusto.
Usha saiu a seguir, desembaraçando-se com agilidade.
Ao vê-la, Tas acenou-lhe com a mão e a jovem correu a juntar-se a ele.
Palin começou a baixar o aro de couro, com movimentos lentos e em espiral. Foi quando ouviu passos, a marcharem em cadência.
Não se atreveu a se apressar. Se retirasse a pulseira agora, o gradeamento cairia na rua, com um estrépito ensurdecedor. Os passos ressoavam à distância, mas aproximavam-se. Palin tentou ser o mais rápido possível mas os seus gestos pareciam de uma lentidão exasperante. O som das botas tornava-se cada vez mais audível.
— Palin — murmurou Tas em voz alta. — Está ouvindo?...
— Cale-se! — ciciou Palin. A grade encontrava-se quase no lugar, quase lhe roçava a mão agora.
Confrontava-se com a parte mais difícil. Retirado o laço de couro, a grade ficava livre do encantamento e começaria a tombar. Tinha de “apanhá-la”, segurá-la e reativar o encantamento, tudo isto no espaço de segundos. Com cautela, retirou a mão de baixo e, fazendo um gesto rápido, virou o laço ao contrário, segurou-o para baixo e deslocou a mão para cima da grade.
Os passos ouviam-se cada vez mais nítidos, possivelmente a apenas meio quarteirão de distância. Os edifícios ainda os cobriam da vista dos cavaleiros, mas quando surgissem na rua defronte da biblioteca, os avistariam, uma sombra escura a perfilar-se contra o luar.
Ouviu um roçar nos arbustos e Tas murmurando, em tom ríspido:
— Não, Usha, espere aqui. É muito perigoso.
Palin repôs a grade no lugar. O calor esvaiu-se do sangue, deixando-o repentinamente fraco, gelado e vazio. Por um breve instante, parecia ser inútil a corrida, uma perda de tempo. Que seria melhor permanecer ali e deixar que os cavaleiros o capturassem.
Palin estava acostumado a esses sentimentos de desespero e de letargia que sobrevinham depois da magia. Sabia que não devia sucumbir. Os cavaleiros encontravam-se muito próximo agora. Mergulhou na sombra do arbusto no mesmo instante em que estes se tornaram visíveis.
O luar reluzia nas suas armaduras negras. Passaram marchando, silenciosos, eficientes. Escondidos no arbusto, os três mantiveram-se imóveis, sem se atrever a respirar, temendo que o pulsar do coração, de tão rápido, traísse a sua presença.
Os cavaleiros desapareceram. A rua ficou deserta de novo.
A fachada de mármore branco da Grande Biblioteca de Palanthas, com o seu pórtico em colunas e as janelas escuras e estreitas, era uma das estruturas mais antigas de Krynn e das mais reverenciadas e respeitadas pelos que por ali passavam. As pessoas que percorriam os seus terrenos falavam em tom abafado, não porque lhes impusessem o silêncio mas sim porque o próprio ar que roçava as árvores parecia sussurrar os segredos milenários que se achavam trancados no interior da biblioteca. Palin ficou com a impressão de que, se tivesse tempo, conseguiria escutá-los.
Mas o tempo escoava-se. Além de se aproximar a hora do encontro com o tio, dentro de instantes os cavaleiros regressariam da sua ronda. As enormes portas duplas da frente eram novas e substituíam as antigas, anos antes destruídas durante a Batalha de Palanthas. Feitas de bronze e ostentando um livro — o símbolo de Gileano — as portas, que se encontravam fechadas, tinham um aspecto imponentíssimo. Palin empurrou-as e constatou que, tal como esperava, estavam trancadas.
— Provavelmente trancadas por dentro — murmurou. — Deve haver um meio ...
— E se experimentasses isto, Palin? Pode ser que dê.
Tasslehoff segurava na ponta de uma corda, suspensa dos recessos sombrios do pórtico.
— Tas, não...
O estrépito de um grande sino de bronze obrigou-o a se calar. As notas sonantes ribombaram através do ar parado, indo repercutir pela rua.
— Credo! — exclamou Tas, largando a corda.
O sino começou a badalar de um lado para o outro, repicando com desvario e quase os ensurdecendo. As janelas da biblioteca se iluminaram. As janelas dos prédios ao longo da rua se iluminaram. Alguém abriu com precaução uma porta menor que se encontrava inserida nas grandes portas.
— O que é? Fogo? — perguntou uma voz roufenha. Uma cabeça rapada perscrutou, receosa, a escuridão. — Onde é o incêndio?
Palin, que conseguira agarrar na corda, conseguiu silenciar os repiques.
— Não há nenhum incêndio, irmão. Eu... — disse.
Uma expressão estranha contorceu o rosto do idoso monge. De olhos arregalados, examinava as vestes brancas do mago, que estavam manchadas e sujas, o vestido de Usha, enrolado em volta da cintura, os seus sapatos, cobertos de excrementos e Tasslehoff, de cujo penacho pingava lodo. O monge levou a mão ao nariz.
— A biblioteca está fechada — disse em voz estridente, e fez menção de fechar a porta.
— Espere! — exclamou Tasslehoff, insinuando o corpo minúsculo na soleira. — Viva, Bertrem! Lembra-se de mim? Sou Tasslehoff Pés Ligeiros. Já estive aqui antes...
— Sim — replicou Bertrem em tom gelado —, eu me lembro. A biblioteca está irremediavelmente fechada. Voltem pela manhã. Depois de tomarem banho. — Recuando, preparou-se para fechar a porta, parou e acrescentou precipitadamente: — Todos menos o kender. — Enxotando Tas para fora, empurrou a porta.
— Por favor! Tem que nos deixar entrar! — Palin entalou o bastão na porta. — Lamento cheirarmos tão mal mas, viemos lá de baixo, dos esgotos...
— Ladrões! — guinchou Bertrem, tentando, sem êxito, fechar a porta. E alteando a voz: — Socorro! Socorro! Ladrões!