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— Vem alguém aí! — avisou Usha.

— Não somos ladrões! — Palin estava ficando desesperado. — Devo me encontrar aqui com o meu tio. Disse-me para esperar por ele no gabinete de Astinus. Deixe-me falar com Astinus!

Bertrem sentia-se tão chocado que quase largou a porta.

— Assassinos! — uivou. — Assassinos que querem matar o mestre estão aqui!

— Cavaleiros! — ciciou Usha. — Estão vindo para cá!

— Bertrem! — chamou uma voz de dentro da biblioteca.

Bertrem deu um pulo, empalideceu e olhou de relance por cima do ombro.

— Sim, Mestre?

— Deixe-os entrar. Estava à espera deles.

— Mas, Mestre...

— Bertrem, será que tenho que repetir?

— Sim, Mestre. Qu... quer dizer, não, Mestre.

Bertrem escancarou a porta. Recuando, levou a manga ao nariz e com a mão indicou aos três que entrassem.

O interior da biblioteca encontrava-se mergulhado na penumbra e era alumiado apenas por uma candeia a óleo que Bertrem instalara numa mesa, a fim de poder responder a quem batesse à porta. A pessoa que o monge designara por “Mestre” continuava invisível.

— Bertrem, feche a porta — ordenou a voz. — Quando os cavaleiros aparecerem indagando o motivo do rebuliço, diga-lhes que estava com um ataque de sonambulismo, e que uma das coisas que faz nesse estado é badalar o sino. Estamos entendidos?

— Sim, Mestre — respondeu Bertrem, com voz submissa.

— Por aqui — prosseguiu a voz vinda das trevas. — Depressa. Enquanto eu permaneço ocioso neste átrio de cantaria, a História vai se escoando sem que a registre. Jovem mago, acenda o bastão. O teu tio te espera.

Palin disse a palavra e o bastão iluminou o vasto átrio. A luz refletiu-se nas fileiras de livros com capa de couro e nas pilhas de pergaminhos, todos cuidadosa e impecavelmente alinhados em prateleiras compridas que se estendiam até se perderem de vista, tragadas pela escuridão, tal como a História que continham fora tragada pelo passado.

A luz também foi incidir no autor dos livros, no escriba dos pergaminhos.

Tinha um rosto que não era nem velho, nem novo, nem tampouco de meia-idade. Era uniforme, sem sulcos, branco como o papel no qual escrevia, num afã constante, a passagem do tempo em Krynn. Nenhuma emoção lhe marcava o rosto, nenhuma emoção perpassava o homem. Vira muito para se comover com o que quer que fosse. Descrevera o nascimento do mundo. Escrevera a ascensão da Casa de Silvanos, o engaste da Pedra Preciosa Cinzenta, a construção de Thorbadin, os poemas épicos de Huma durante a Segunda Guerra dos Dragões, a Guerra de Kinslayer, a formação dos Cavaleiros da Solamnia, a fundação de Istar. E continuara a escrever durante a destruição terrível que se seguiu ao Cataclismo, quando as paredes da biblioteca desabaram em torno de si.

Escrevera a queda dos Cavaleiros de Solamnia, a ascensão dos falsos sacerdotes, o regresso dos dragões, a Guerra da Lança.

Afirmavam alguns que há muito, muito tempo, fora um monge ao serviço de Gileano e que nessa começara a escrever a sua História, agora famosa. Contava-se que Gileano ficara tão impressionado com o trabalho que recompensara o mortal concedendo-lhe a imortalidade — desde que continuasse a escrever.

Outros afirmavam ser ele o deus Gileano em pessoa.

Os que compareciam à sua presença, raramente conseguiam recordar-se das suas feições, mas nunca esqueciam os olhos: escuros, errantes, oniscientes, destituídos de piedade e de compaixão.

— Chamo-me Astinus, Filha dos Irdas — replicou, embora Usha não tivesse formulado a pergunta, em voz alta.

Usha olhou-o com uma expressão de espanto e abanou a cabeça.

— Eu não... — titubeou.

Os olhos fitaram-na, implacáveis, desarmando-a.

— Como sabia? — Os olhos prenderam-na, fascinaram-na, obrigaram-na a avançar. — O que você sabe?

— Tudo.

— Sabe a verdade a meu respeito? — titubeou Usha, olhando de esguelha para Palin.

— Coloque a si mesma a pergunta, Filha dos Irdas — replicou Astinus, em tom distante. — Não a mim. Não é bom lugar para falar — acrescentou, olhando de relance para a porta. — Os cavaleiros devem estar para aparecer a qualquer instante. Venham.

Virou à esquerda e seguiu por um corredor. Bertram — com um ar desditoso — ficou de guarda na porta fechada. A campainha retiniu com estridência e os três estugaram o passo.

— Olá, Astinus! — disse Tasslehoff, saltitando ao lado do cronista, nada intimidado pela sua presença imponente. — Lembra-se de mim? Eu me lembro de você. Há pouco, no Abismo, vi o deus Gileano. Você é mesmo o Gileano? Não se parece lá muito com ele, mas o Fizban também não se parece com o Fizban. O Dougan Martelo Vermelho parece-se bastante com o Reorx, mas já reparei que os duendes não têm muita imaginação. Também reparou? Ora se eu fosse deus...

Astinus parou de repente. Pelo rosto perpassou-lhe um vislumbre de emoção.

— Se os Kenders fossem deuses, o mundo seria, com certeza, um lugar interessante. Embora nenhum de nós conseguisse encontrar o que quer que fosse.

— Onde está o meu tio? — perguntou Palin, ansioso e ao mesmo tempo relutante, face à perspectiva do encontro dele com Usha.

— Aguarda-o nos meus aposentos particulares. Mas... — Astinus olhou de relance para Palin — decerto não tenciona encontrá-lo nesse estado.

Palin encolheu os ombros, dizendo:

— Estou certo de que o meu tio compreenderá. Não nos restou outra alternativa...

Astinus deteve-se junto de uma porta fechada e, apontando, disse:

— Encontrará ali água para se lavar e uma muda de roupa.

— Senhor, agradeço-lhe a gentileza — começou Palin —, mas o meu tio disse para eu me apressar...

Verificou que Astinus lhe virara as costas e se afastara.

— Também tenho vestimentas para vocês — disse o cronista, dirigindo-se a Usha e a Tas. — São roupas velhas que doamos aos pobres, mas estão limpas e em bom estado. Vocês dois, venham comigo.

Quando se afastava, Astinus observou, por cima do ombro:

— Palin Majere, volto dentro de alguns momentos. Depois de se vestir, o levarei para junto do teu tio. Ande, Filha dos Irdas. E você também, Mestre Pés Ligeiros.

— Ouviu do que ele me chamou? — disse um orgulhoso Tas a Usha, enquanto seguiam Astinus. — Mestre Pés Ligeiros!

Palin considerou que Astinus tinha razão. Raistlin não quereria encontrar-se com um sobrinho que fedia como se tivesse banqueteado na companhia de duendes dos esgotos.

Palin abriu a porta e entrou no quarto — uma cela exígua, idêntica às dos ascéticos, os monges que dedicavam a vida ao serviço da biblioteca e do respectivo mestre. Parcamente mobiliado, continha uma cama e um lavatório, no qual se via um jarro com água, uma tina e uma candeia acesa. O extremo do leito perdia-se na escuridão mas, avistando uma protuberância, Palin deduziu tratar-se da muda de roupa.

Palin mal olhou para as roupas lavadas. Aproximou-se da tina, subitamente ansioso por se ver livre daquelas vestes imundas e retirar o lodo e fedor que começava a provocar-lhe engulhos no estômago.

Depois de lavar, e sentindo-se melhor, embrulhou a roupa suja num canto e virou-se para vestir as lavadas.

Deteve-se, sem fôlego e de olhos esgazeados. Agarrou nas vestes e aproximou-as da luz, julgando-se vítima de uma alucinação.

Não se enganara. Pelo menos não eram os seus olhos lhe pregando uma peça.

As vestes que Astinus dera a Palin eram negras.

10

A escolha.

O primeiro pensamento que ocorreu a Palin foi que Astinus lhe pregara alguma peça. Mas revendo os olhos impassíveis, Palin rejeitou a idéia. A roupa negra era macia ao tato e sentia na mão o estranho calor que emanava dela. Perpassaram-lhe o espírito as palavras que dirigira a Raistlin na Torre da Feitiçaria Suprema: