Sei que vai ser uma tarefa árdua e difícil, mas tudo farei, tudo sacrificarei para alcançar mais poder.
Seria esta a resposta? Seria este o sacrifício pretendido pelo tio?
Ouviu bater à porta. Antes que pudesse responder, esta escancarou-se. Astinus encontrava-se na soleira e, de pena na mão, segurava nos braços um livro volumoso.
— Bom — ordenou — porque perde tempo? Vista-as.
— Não entendo — respondeu Palin. — Que significa isto?
— Significar? O que você pensa que significa? Já tomou a sua decisão. Vista-as.
— Decisão? Qual decisão? Nunca pretendi isto. Não quero envergar as Vestes Negras. Não quero utilizar a magia para beneficiar, prejudicar ou obrigar os outros a submeterem-se à minha vontade...
— Ah não? — Astinus mostrava-se calmo. — Pensei que permitir que um homem morresse no teu lugar era uma decisão digna das vestes negras.
Palin protestou.
— Morrer? No meu lugar? Deve estar enganado. Nunca... — Calou-se. — Ó deuses! Não se refere a Steel! Claro que não! Decerto os cavaleiros não o condenaram à morte. Ele deve ter-lhes explicado as circunstâncias. Não havia nada que pudesse fazer. Não acreditaram nele?
Astinus entrou no quarto. Dirigindo-se para Palin, o cronista abriu o grande livro que segurava e indicou uma linha, escrita ao fundo da página.
Neste dia, ao despontar da Primeira Vigia, Steel Montante Luzente foi executado. Morreu no lugar de Palin Majere, que dera a sua palavra de honra que voltaria e faltou a mesma.
— Despontar da Primeira Vigia — murmurou Palin. Levantando a cabeça, olhou para Astinus. — Ainda não foi a Primeira Vigia! Não pode ser! Como...
— Ainda faltam várias horas para o nascer do Sol — respondeu Astinus, encolhendo os ombros. — Por vezes, antevejo os acontecimentos. Facilita a tarefa, em especial quando é irremediável.
— Onde? — perguntou Palin, agarrando nas vestes negras. — Onde ele morrerá?
— Na Torre do Sumo Sacerdócio. Morrerá na desonra, rebaixado do seu posto. Pousará a cabeça num cepo de pedra incrustado em sangue. Lorde Ariakan em pessoa empunhará a espada que decepará a cabeça de Steel Montante Luzente do corpo.
Palin permaneceu em silêncio, sem se mover. Implacável, Astinus prosseguiu:
— O cadáver do Montante Luzente não baixará ao túmulo. Será arremessado das muralhas, para servir de repasto aos abutres. Constituirá um exemplo para os outros cavaleiros. É o que acontece aos que desobedecem às ordens.
Imagens desfilaram pelo espírito de Palin: Steel ajoelhado junto do túmulo dos seus irmãos, Steel lutando ao lado dele na Clareira de Shoikan, Steel a salvar-lhe a vida...
— Mas que importa? — recitou Astinus em tom retumbante. — O homem é ruim. Entregou a alma à Rainha das Trevas. Matou o seu quinhão de homens bons, de Cavaleiros da Solamnia. Merece morrer.
— Mas não na desonra e na vergonha — Palin olhou fixamente para o livro que Astinus segurava nas mãos, para o que estava escrito na página. — Primeira Vigia. Muito tarde. Se pudesse mandaria interromper a execução, mas não era possível. Levaria dias para ir de Palanthas até à Torre do Sacerdócio Supremo. Nunca chegaria a tempo de impedir a execução. — Sentiu vergonha de si mesmo, mas experimentou uma enorme sensação de alívio.
Ouviu, dentro de si, uma voz que sussurrava:
Vista as roupagens negras. Quando o fizer, abrirei o livro de encantamentos de Fistandantilus. Merece-o.
Palin sentiu na boca um travo amargo, pior que o fedor dos esgotos. Passou a mão pela roupagem negra. Era macia ao tato, suave e quente, o envolveria, protegeria.
— Tio, não fiz nada! A culpa não foi minha! Nunca julguei que, por minha causa, o Steel fosse prejudicado! E mesmo que quisesse ir, nunca chegaria a tempo.
— Tomou a sua decisão. Assuma-a com orgulho! Sobrinho, não minta a si mesmo! — sussurrou a voz. — Pode ir. Tem o anel. O anel de Dalamar. O kender o devolveu. Num abrir e fechar de olhos, ele te transportará à Torre do Sumo Sacerdócio.
Palin estremeceu. De súbito, o Bastão de Magius tornou-se quente, mais quente do que a roupagem negra que segurava. O anel o levaria. Só tinha que fazer o pedido.
Mas, que desejo terrível! Olhou para Astinus.
— Ouviu?
— Sim. Eu ouço todas as palavras, mesmo as da alma.
— É... é verdade o que ele diz? Posso impedir a execução?
— Se chegar a tempo à Torre do Sumo Sacerdócio, sim, os cavaleiros interrompem a execução. — Astinus olhou para Palin com uma leve expressão de curiosidade. — Interrompem a execução de Steel. Está preparado para eu riscar o nome dele e escrever o teu?
Palin sentiu um aperto na garganta e mal conseguia respirar. “Não, não estou preparado para morrer! Receio a morte, receio a dor, as trevas infindáveis, o silêncio ininterrupto. Quero ver o Sol nascer, ouvir música, beber uma caneca de água fria. Encontrei alguém que desejo amar. Desejo sentir outra vez o formigamento da magia. E os meus pais. Sentiriam um amargo desgosto. Não quero partir desta vida!”
Então não parta. Sobrinho — na sua mente, ouviu de novo a voz sussurrante. — Steel Montante Luzente entregou a alma à Rainha das Trevas. Muitos considerariam um bom pretexto para deixar que morresse.
“Dei a minha palavra. Prometi voltar.”
Palavra à qual faltou? Jura que quebrou? O que vale isso? Depois que Steel Montante Luzente morrer, quem saberá ou se importará?
“Eu”, respondeu Palin.
E o que você esperava sobrinho? O que pensava que significava a palavra “sacrifício”? Eu lhe digo. Significa trocar tudo — tudo! — amor, honra, família, a tua própria alma — pela magia. Não era o que queria? Ou esperava consegui-lo sem dar nada em troca?
“Está me pedindo que sacrifique a vida”, respondeu Palin.
Claro.
“Eu sacrifico a vida”, percebeu Palin, “de uma maneira ou de outra.”
De uma maneira ou de outra, respondeu Raistlin.
11
A execução.
Steel Montante Luzente encontrava-se deitado numa enxerga de palha, que se encontrava no chão de pedra da cela. Na noite anterior à sua execução, não dormira, passara-a em amarga e silenciosa vigília. Não temia a morte, pois fizera as pazes com ela e ansiava o encontro.
Mas a morte não chegaria e o levaria como pretendera — morrer com honra, em combate. A sua morte seria inglória, vergonhosa, desonrosa. Morreria acorrentado, teria o fim dos ladrões, dos covardes, dos traidores.
A cela era despojada de janelas e não conseguia vislumbrar a madrugada, mas ouvira os chamados das rondas. Escutara-os a noite inteira, chegando-lhe os gritos da última Vigia a atravessarem a torre, e imaginara como decorreria o tempo para os que eram destacados para os turnos.
Haviam de sorrir, espreguiçar-se e bocejar. Aproximava-se o render da guarda. Mais uma hora e abandonariam os postos, voltariam para as barracas e mergulhariam nas abençoadas trevas do sono. Regressariam dessa escuridão, para acordar praguejando contra os percevejos, o calor e o ressonar dos que dormiam próximo.
Dentro de uma hora, Steel Montante Luzente mergulharia nas trevas, das quais não há retorno, a menos que Chemosh se apoderasse dele e o obrigasse a caminhar pelo mundo feito alma penada. Steel nada receava na vida, mas o pensamento de tão pavoroso destino provocava-lhe calafrios na alma. Encontrara-se uma vez com o defunto cavaleiro Lorde Soth. O poder do morto-vivo aterrorizara-o e, olhando com repulsa e piedade para o rosto sem feições do defunto cavaleiro, murmurara, em oração: “Takhisis, Rainha das Trevas, conceda-me qualquer outro destino que não este!”