Ao longo da noite, debatera-se nesta agonia. Será que Takhisis o perdoaria? Ou será que o entregaria a Chemosh, o deus com a máscara de caveira, para que vivesse por toda a eternidade como escravo da Morte?
O pensamento deixou-o gelado, tiritando de pavor, com o corpo ensopado em suor frio. Estremecendo, enrodilhara-se na enxerga de palha e orava pela mercê de Sua Majestade das Trevas, quando a chave da porta da cela girou.
— Visita — anunciou o carcereiro. Disse-o com voz submissa, reverente, e o tom inusitado, advertiu Steel de que não se tratava de uma visita comum.
Endireitando-se, levantou-se. Vestia a roupagem que envergaria para a execução, uma túnica comprida preta, simples, de pano cru, idêntica às utilizadas para amortalhar os indigentes antes de serem lançados nas valas comuns. Aguardou, tenso, nervoso, pensando, receando, invadido pela desvairada esperança de se tratar do Senhor de Ariakan, que vinha comutar a pena de morte. Com um chiar de gonzos, a porta da cela se abriu.
Entrou uma figura envolta em vestes negras, uma figura vergada sob o peso dos anos. Na penumbra da cela, tornava-se difícil a Steel confirmar se se tratava de homem ou mulher. Lembrava uma trouxa vacilante, envolta em trevas. Não se encontrava só. Uma outra, também de negro, caminhava ao seu lado, guiando-lhe os passos trôpegos.
Contudo, a voz que falou não era fraca nem vacilante.
— Feche a porta e tranque-a.
Steel sentiu-se agitado pelas recordações. Reviu a mesma cena, o mesmo encontro, que agora se repetia. Deixou-se tombar de borco na pedra fria e úmida, com os braços estendidos por cima da cabeça.
— Sua Santidade! — murmurou.
— Luz — ordenou a Suma-Sacerdotisa à acólita que lhe prestava assistência.
A outra mulher, mais jovem, pronunciou uma palavra e, de uma fonte invisível, jorrou luz. Mas esta não fez desaparecer a escuridão, antes pareceu adensá-la, torná-la mais forte, imprimir-lhe vida.
A Suma-Sacerdotisa de Takhisis avançou, com passos trôpegos, até se postar diante dele.
— Levante-se — ciciou. — Olhe para mim.
Subjugado pelo temor, Steel ajoelhou-se.
Quando, anos atrás, a Suma-Sacerdotisa abençoara a sua investidura, esta já lhe parecera idosa. Mas a sua velhice de agora, transcendia tudo o que era concebível e compreensível. O cabelo grisalho pendia-lhe, em madeixas, para o rosto. Sob a pele retesada, espetavam-se os ossos, como que despojados de carne. Os lábios estavam violáceos, exangues, tal como as veias das mãos, que tinham uma coloração de marfim.
Estendendo uma delas — a outra fincava-se no braço da acólita — a sacerdotisa segurou no queixo de Steel. Os dedos dela lembravam garras e o cavaleiro sentiu as suas unhas compridas, amareladas e pontiagudas enterrarem-se em sua carne.
— A sua Rainha ouviu as suas preces e está satisfeita contigo, Steel Uth Matar Montante Luzente. Serviu bem Sua Majestade, melhor do que imagina. Neste dia, luta por conquistar duas almas. Para você, foi preparado um lugar na terrível guarda de Sua Majestade das Trevas, um lugar de honra...
Steel fechou os olhos. Lágrimas de alívio e de gratidão escorreram-lhe das pálpebras.
— Honro Sua Majestade e agradeço-lhe do fundo do coração...
— Com uma condição — interrompeu-o a sacerdotisa. Os olhos de Steel arregalaram-se.
As unhas da sacerdotisa arranharam-lhe a carne, provocando sangue. Largando-lhe o queixo, baixou a mão e estendeu um dedo descarnado.
— Tire o talismã.
Steel levou a mão ao pescoço e tocou na corrente de fina prata que o cingia. Da mesma pendia um ornamento que Steel mantivera sempre oculto. Só quatro pessoas sabiam da sua existência e uma delas, Tanis Meio Elfo, encontrava-se morto agora. O Senhor de Ariakan estava a par, fora o próprio Steel a contar-lhe. A sacerdotisa sabia, e também Caramon Majere, que testemunhara as circunstâncias. A mão de Steel fincou-se no talismã, a jóia em forma de estrela.
Steel interrogara-se com freqüência por que motivo a usaria. A jóia constituía um estorvo, pois as suas arestas pontiagudas causavam comichão e incomodavam-no. Por mais de uma vez decidira livrar-se dela, quase quebrara a corrente, para arrancá-la e arremessá-la à poeira.
Mas sempre que a tocava, sentia-se invadido por um sentimento reconfortante, balsâmico, de serenidade, tal como a água fria serve de alívio à sede ardente. A sensação apaziguava-lhe o torvelinho quase constante que o remexia por dentro, aclarava-lhe os pensamentos, deixando-os cristalinos, bem definidos e de arestas aguçadas, tal como a jóia. Desapareciam as dúvidas que o assediavam e recuperava a confiança em si mesmo e nas suas capacidades.
Passou os dedos pela corrente prateada. Sabendo a influência que a jóia exercia nele, Steel sentia relutância em tocá-la. Os seus pensamentos encontravam-se agora serenos e resolvera o conflito interior. A Rainha perdoara-lhe o pecado, preparara-lhe um lugar de honra ao seu lado. A jóia, agora, só o confundiria e perturbaria.
Sim, a sacerdotisa tinha razão. Devia retirá-la naquele instante, para que a sua alma comparecesse à presença de Takhisis livre de estorvos.
— Assim farei — respondeu, e segurando na corrente, deu-lhe um forte puxão.
A corrente não se quebrou.
— Retire-a! — ordenou a sacerdotisa, já encolerizada e semicerrando os olhos orlados de vermelho. — Ou incorre na ira de Sua Majestade!
Diante dos olhos de Steel materializou-se uma visão, a visão de uma mão descarnada, emergindo, a rastejar, do solo sufocante da Clareira de Shoikan, à procura do calor do sangue dos vivos para esconjurar o frio gélido que nunca poderia ser esconjurado, e soube — com profundo terror — que a mão lhe pertencia.
Frenético, desesperado, puxou e tentou quebrar a corrente, até esta se enterrar no pescoço.
— Largue-me, pai! — gritou, sem perceber o que dizia. — Largue-me! Fiz a minha opção...
Percorreu, com a mão, a corrente, e segurou na jóia, tencionando utilizá-la como alavanca.
Dos seus dedos jorrou um clarão brilhante e quente. Sentiu os medos apaziguados, medos que eram como os pesadelos de uma criança sozinha na escuridão, como se o braço forte do pai se encontrasse ali para apoiá-lo, reconfortar, protegê-lo do mal.
Sentiu-se transbordar de paz e de quietude. Já não experimentava amargura. Soube, de repente, que embora a sua morte pudesse parecer desonrosa para alguns, outros havia que a honrariam. A alma lhe pertencia. Takhisis não podia reivindicá-la, a menos que a entregasse de bom grado. Contudo, ainda não tomara tal opção.
Precisava ter fé, mesmo que esta só existisse nele.
A mão de Steel abriu-se e largou a jóia, que de novo lhe aflorou o peito.
— Está condenado! — rosnou a Suma-Sacerdotisa em tom sibilante. — Traíu a sua Rainha! Que os seus tormentos se arrastem por toda a eternidade!
Ao ouvir a terrível praga, Steel estremeceu, mas não titubeou, não se prostrou nem rastejou. Agora, nada sentia, ficara despojado de todas as emoções, até do medo.
— Leve-me daqui! — ordenou a sacerdotisa.
A acólita ergueu a cabeça, que mantivera inclinada, dardejou Steel com um olhar repassado de ódio e inimizade e, obedecendo, guiou os passos trôpegos da sacerdotisa pelas pedras irregulares.
Steel sabia que devia dizer algo, mas de repente sentiu-se cansado, muito cansado. Estava cansado daquela vida. Ansiava por lhe pôr termo, de acabar com o sofrimento e a dúvida, com a sensação de constituir duas entidades separadas e presas num mesmo corpo, acabar com a luta destas pela posse da sua alma.
Em breve, a batalha chegaria ao fim. Deu consigo a aguardá-la com anseio.
O retinir de uma trombeta, cristalino como a prata pura, anunciou a Primeira Vigia.