Fora da porta da cela, chegou-lhe o som de botas que marchavam numa cadência solene. Steel levantou-se. Quando entrassem para levá-lo, o encontrariam orgulhoso e de cabeça erguida.
A porta escancarou-se. Entraram dois cavaleiros de categoria superior, membros do estado-maior pessoal do Senhor de Ariakan. Steel reconheceu a honra que lhe concediam e sentiu-se humildemente grato.
— Steel uth Matar Montante Luzente — anunciou um deles, falando em voz baixa e solene —, por este meio é citado a submeter-se à sentença do nosso suserano. Tem, nesta hora derradeira, algo a dizer em sua defesa?
— Não, meu senhor — replicou Steel em tom sereno — Aceito a sentença do meu amo como sendo justa e o meu castigo como o devido.
— Assim seja — respondeu o cavaleiro, em tom soturno.
Steel ficou estupefato ao constatar que o homem esperara receber uma resposta diferente.
Ouvida a decisão, a expressão do cavaleiro tornou-se rígida. Ele e o companheiro aproximaram-se de Steel. Ataram-lhe as mãos atrás das costas com tiras de couro preto. Depois, ataram-lhe o cabelo negro e espesso com outro fio de couro, a fim de lhe desnudarem o pescoço e o prepararem para o golpe da espada. Feito isto, prepararam-se para segurá-lo pelos braços.
Steel libertou-se do aperto.
— Irei pelo meus próprios pés.
Dizendo isto, encaminhou-se para fora da cela.
Postado de lado, o carcereiro murmurou, com voz roufenha:
— Senhor Cavaleiro, que a Rainha das Trevas possa julgar-te com justiça.
Da escuridão das celas contíguas à sua, elevou-se um coro de vozes:
— Que Paladino possa defender-te, Montante Luzente!
Em algum lugar, ouviu-se uma voz nas trevas, que começou a cantar:
— Sularus Humah durvey. Karamnes Humah durvey...
Tratava-se da Canção de Huma, herói dos Cavaleiros da Solamnia. Um a um, os outros prisioneiros juntaram-se a ele, num coro de vozes forte e pungente que rasgou a alvorada.
— Mande que se calem — disse com brandura, um dos cavaleiros das trevas. O carcereiro, que se afastava, fingiu que não ouvia.
Steel quis responder, não lhe ocorreram palavras, e se as houvesse, não conseguiria dar-lhes voz. Acenou silenciosamente com a cabeça, em agradecimento, e com os olhos marejados de lágrimas, iniciou o percurso.
Era curta a distância que separava o bloco de celas do pátio central, onde Steel lutara com bravura e vira Tanis Meio Elfo morrer em seus braços. Era curta a distância que separava Steel da morte pela sua própria espada, pela espada do pai.
Ficou estupefato ao avistar, ao longo do percurso, um cordão de cavaleiros. Achou, de início, que se encontravam ali para insultá-lo. Mas à sua passagem, caminhando de pés nus e envolto nas roupagens da vergonha, cada homem ou mulher esboçava-lhe uma saudação grave e solene.
Os cavaleiros fundiam-se numa mancha de armaduras reluzentes que materializou a imagem do pai, desfilando diante de si, na sua armadura prateada que os primeiros raios do alvorecer fazia cintilar.
Steel entrou no pátio, apinhado de cavaleiros, que formavam um círculo. No centro, erguia-se um cepo de mármore negro, manchado e incrustado de sangue seco, no qual havia uma cavidade que serviria para Steel pousar a cabeça.
Com passos firmes e resolutos e ladeado pelos dois guardas cavaleiros, Steel Montante Luzente encaminhou-se para o cepo e postou-se diante do mesmo.
Na qualidade de padrinho e juiz de Steel, o Senhor de Ariakan seria também o seu carrasco. Nas mãos enluvadas, Ariakan segurava a espada dos Montante Luzente. O rosto de Sua Senhoria mostrava-se frio e inexorável como a pedra.
Sem olhar para Steel, encarou os dois cavaleiros.
— O prisioneiro apresentou algum argumento susceptível de impedir o prosseguimento da sentença? — perguntou.
— Não, meu senhor — respondeu um dos cavaleiros —, não apresentou.
— Meu senhor, considera a sentença justa — interveio o outro. — O castigo correto.
— Nesse caso, a sentença será levada a cabo — concluiu o Senhor de Ariakan, detendo o olhar em Steel.
— Steel uth Matar Montante Luzente, Sua Majestade das Trevas será o teu próximo juíz. A ela garantirá, tal como nos disse, que foi julgado com eqüidade, que nenhuma oportunidade para falar em sua defesa lhe foi negada, e que a recusou.
— Assim farei, meu senhor — respondeu Steel, com uma voz profunda que repercutiu no ar, já tão sufocante àquela hora têmpora. — Não lhe imputo a responsabilidade pela minha morte, senhor. Assumo-a totalmente.
O Senhor de Ariakan aquiesceu, satisfeito. Não era inusitado a Rainha Takhisis impugnar o julgamento de homens mortais, reenviar a alma da vítima para que se desforrasse nos que a haviam executado injustamente.
— Que a sentença decorra.
Um dos cavaleiros que escoltara Steel, estendeu-lhe uma venda. Abanando a cabeça, Steel recusou-a, orgulhoso. Segurando nos braços de Steel, os dois cavaleiros ajudaram-no a ajoelhar-se diante do cepo. Um deles afastou-lhe o cabelo, deixando-lhe o pescoço descoberto.
— Atinja-o ali! — ouviu-se uma voz sibilante, a voz da Suma-Sacerdotisa. — Atinja-o na marca avermelhada.
Referia-se ao vinco deixado pela corrente de prata. Virando a cabeça, Steel pousou a cara no cepo de mármore que, apesar do calor que se fazia sentir, estava frio como a própria morte.
— Montante Luzente, faça as suas orações à Rainha — disse o Senhor de Ariakan.
— Já as fiz — respondeu Steel, em tom calmo. — Estou pronto.
Viu a espada erguer-se por cima dele, bem alto, prestes a desferir um golpe que deceparia a cabeça de Steel do corpo. Viu Ariakan executar um arco e, quando a lâmina atingiu o ponto culminante, a luz do Sol, incidindo nela, fê-la irradiar um clarão esbranquiçado, como se fosse uma estrela.
Steel fechou os olhos. A última recordação que levaria consigo seria a daquele maravilhoso clarão. Tenso, aguardou que o golpe fosse desferido.
Em vez disso, o que sentiu foi um grande peso, o de outro corpo, a bater contra o seu, fazendo-o perder o equilíbrio. As mãos amarradas impediram-no de se proteger, de modo que tombou para o lado.
Atônito, quase zangado com a interrupção, abriu os olhos para ver o que se passava.
Pairando sobre ele, com ar protetor, viu um jovem de vestes brancas. Este segurava nas mãos um bastão sobrepujado por um cristal azul, incrustado numa garra de dragão.
— Que significa isto? — exclamou o Senhor de Ariakan, com voz retumbante. — Em nome da Rainha das Trevas, quem é você?
— Sou quem você procura — respondeu o jovem em voz hesitante. Em tom duro, acrescentou: — Sou Palin Majere.
12
Velhos amigos.
Um encontro sugerido.
Raistlin Majere encontrava-se no gabinete de Astinus de Palanthas. Inquieto, o arquimago perambulava pela sala, passeando o olhar frio e desinteressado pelos volumes da História contemporânea cuidadosamente alinhados nas prateleiras. Sentado à escrivaninha, Astinus continuava a escrever no livro. De vez em quando, aparecia um dos ascéticos que, em silêncio, para não perturbar o amo, reunia os volumes completos e os transportava para a biblioteca, onde eram dispostos por ordem cronológica.
Desde que Astinus voltara para o gabinete, os dois homens não tinham trocado uma palavra. Os campanários da cidade badalaram a Primeira Vigia. Interrompendo o vaivém agitado, Raistlin olhou para a porta aberta e para o átrio, como se esperasse alguém.
Ninguém apareceu.
Recomeçou, então, a andança, girando em círculos em volta da cadeira de Astinus e espreitando para ler o que o historiador acabara de escrever. Raistlin aquiesceu de si para si, satisfeito.
— Obrigado, meu amigo — disse com brandura.
Astinus não afastou a pena do papel e o fluxo de tinta apenas se interrompeu quando mergulhou a pena no tinteiro, e fê-lo com tanta rapidez que o gesto quase passou despercebido.