— Fiz muito pouco — replicou Astinus, continuando a escrever.
— Mostrou o livro a Palin — observou Raistlin. — Eu sei que não é inusitado, mas mostrou-lhe o livro a fim de obrigá-lo a tomar uma decisão. E se há coisa que te desagrada é imiscuír nos assuntos da Humanidade.
— Os assuntos da Humanidade são meus assuntos — replicou Astinus. — Porque não? Há séculos que os escrevo, que os vivo... todos eles.
Abrandou o escrevinhar até que parou. Iniciara precisamente, naquela manhã, um novo volume. Espesso, com capa de couro, as suas folhas de pergaminho, em branco, aguardavam o registro de gargalhadas, lágrimas, imprecações, golpes, os vagidos do recém-nascido, o estertor do moribundo. Os seus dedos obstinavam-se em dobrar-se em garra, a fim de segurarem a pena. Com o indicador manchado de tinta vermelho azulada, Astinus folheou as páginas em branco até chegar ao fim.
— O que for que aconteça — disse baixinho —, este livro será o derradeiro.
Pegou na pena e pousou-a no papel. A pena raspou, fazendo esguichar tinta e manchando a folha. Astinus franziu o cenho, colocou de lado a pena quebrada, retirou outra da escrivaninha e recomeçou a escrever.
— Acho que já sabia a decisão que o teu sobrinho ia tomar — disse.
— Já sabia — respondeu Raistlin baixinho. — Por isso mandei Caramon de volta para casa, pois haveria de interferir. Palin tinha de tomar a decisão por si.
— A acertada... para ele — observou Astinus.
— Sim. É jovem, nunca foi realmente posto à prova. A vida tem sido fácil para ele. Foi amado, admirado e respeitado. Tudo o que desejou, foi-lhe concedido. Nunca conheceu as agruras. Quando quis dormir, aguardava-o uma cama, uma cama com lençóis lavados, num quarto quente e acolhedor. Ah, é verdade, andou em viagem com os irmãos, mas... a não ser a última, as outras foram mais um passeio do que outra coisa. Não se compara com o que me aconteceu, e a Caramon, quando, antes da guerra, éramos mercenários.
Refletindo, Raistlin acrescentou:
— Só uma vez foi realmente posto à prova, durante a batalha em que os irmãos morreram. Falhou...
— Não falhou — observou Astinus.
— Ele acha que sim — respondeu Raistlin, com um encolher de ombros —, o que vai dar no mesmo. Na realidade, lutou bem valendo-se da magia de que dispunha, manteve o sangue frio no meio do caos pavoroso, lembrou-se dos encantamentos em alturas durante as quais nos admiramos por um homem se recordar até do próprio nome. Mas perdeu. Estava condenado a perder. Só quando segurou na mão as vestes negras, só quando teve de condenar um homem a uma morte injusta, só então chegou ao sacrifício para o qual devia estar preparado.
— E pode bem morrer na tentativa de alcançar tal discernimento. — Desta vez, Astinus não parou de escrever.
— É o risco que todos corremos. Assim decidiu o Conclave... — Raistlin olhou para os livros e franziu o cenho, como se conseguisse ler o conteúdo e este lhe desagradasse.
— Tal como outrora decidiram no teu caso, meu amigo.
— Tentaram-me... e caí, por isso me rebelei e paguei um elevado preço. Contudo, mesmo que não caísse, muito provavelmente a Guerra dos Lanceiros estaria perdida. — Raistlin fez com o lábio um trejeito de escárnio. — Como se tece essa linha no grande desenho?
— Como todas as linhas — respondeu Astinus. — Repare no tapete debaixo dos teus pés. Se virá-lo, notará o que parece ser uma amálgama confusa de fios multicoloridos. Mas, se o examinar de frente, vê que os fios se encontram tecidos firmemente e de uma forma nítida e formam uma textura forte. Oh, está um pouco esfiapado nos cantos mas, no geral, tem agüentado bem.
— Precisa mesmo ser forte — disse Raistlin baixinho —, para suportar o que está para vir. Meu amigo, há mais uma coisa que eu queria lhe pedir.
— O que é?... — Astinus não levantou a cabeça, mas a pena continuou a deslizar pelo papel.
— Gostaria de ver a Venerada Crysania — respondeu Raistlin.
Desta vez, Astinus levantou a cabeça e a pena deteve-se. Poucas coisas deixavam o historiador atônito, pois este vira, ouvira e sentira tudo. No entanto, o pedido apanhou-o desprevenido.
— Ver a Venerada Crysania? Porquê? — inquiriu. — O que lhe iria dizer? Que lamenta o que lhe fez? A forma como a usou? Estaria mentindo. Não disse ao seu irmão que, se voltasse atrás, faria tudo de novo?
Raistlin virou-se. Uma réstia de cor animava-lhe as faces pálidas e exangues.
— Usei-a sim — disse. — Mas, esquece a forma como ela me usou? Os dois éramos iguais, só que vestíamos cores diferentes.
— Ela o amava...
— Amava ainda mais a sua ambição.
— É verdade — concordou Astinus. — E, quando finalmente se apercebeu, já não conseguia ver mais nada. O que lhe diria? Sinto-me curioso, sobretudo porque o encontro que sugere nunca se concretizará.
— Por que não? — perguntou Raistlin em tom contundente. — Não tenho que fazer mais do que me dirigir aos recintos do templo. Não podem... não se atreverão... me expulsar.
— Pode ir lá quantas vezes quiser, mas de pouco te valerá. Já esqueceu a terrível calamidade que paira sobre o mundo? Tal como muitos outros, a Venerada Crysania foi chamada a desencadear a sua própria batalha contra o Caos. A sua história, a de Palin, a de Steel Montante Luzente são apenas algumas das muitas que nesta altura ando a escrever.
— A grande amálgama — murmurou Raistlin, esfregando os pés no tapete. — A Venerada Crysania partiu sozinha?
— Não, um homem que lhe é devotado a acompanha. Viajam juntos, embora ela não perceba sua verdadeira natureza. Ora aí tem outra história. Vamos lá, satisfaça a minha curiosidade. Pediria perdão?
— Não — respondeu Raistlin com frieza. — Porque haveria de fazê-lo? Ela teve o que queria. Eu tive o que me era devido. Estamos quites.
— Não lhe pediria desculpas, não lhe rogaria perdão. Que queria lhe dizer então?
Raistlin manteve-se por longo tempo em silêncio. Virando-se para as prateleiras de livros, contemplava agora as sombras que pairavam sobre eles, o tempo que nunca aconteceria.
— Queria lhe dizer que, às vezes, no meu longo sono, sonhei com ela — respondeu com doçura.
13
O bilhete.
O plano de Usha.
Tumulto na biblioteca.
Usha tomou um banho de gato, como diria o Protetor, o que significava que se esmerara pouco nos cuidados de higiene. Mas, pelo menos, conseguira expulsar o fedor de esgoto e o cheiro de gordura e cerveja bolorenta da taberna, e, entre estes, que venha o diabo e escolha. Também mudara de roupa, embora ficasse quase tão surpreendida e receosa quanto Palin com a muda que a esperava sobre a cama.
Deparou com as velhas roupas, as roupas feitas para ela pelos Irdas, as roupas que julgara perdidas no quarto exíguo e miserável situado por cima da taberna. E também encontrou o alforje onde guardava os únicos pertences — os artefatos mágicos dos Irdas. Assustou-a ver as roupas e, em especial, o alforje. Ao que parece, alguém fora buscá-los, e o fizera possivelmente antes de saber que ela se encontraria ali!
Usha não gostou. Não gostava daquele lugar nem da sua gente. A única pessoa que lhe agradava era Palin e apreciava-o tanto, que o sentimento se tornava mais assustador do que todo o resto.
Por que teimou em mentir?, disse para consigo, sentindo-se infeliz. Mentiras uma atrás da outra. No início, todas elas insignificantes e inocentes, e que agora parecem avolumar-se.
Um montículo de areia que se convertera numa montanha de seixos. Teria que costurar para mantê-los no lugar, pois se um se desequilibrasse, todos desabariam por cima dela, esmagando-a. E a montanha de mentiras erguia-se agora como uma barreira, a separá-la de Palin.