Amava-o, queria-o para si. Ao longo do último mês, sonhara com ele e revivera o breve encontro de ambos na torre tenebrosa
Outros homens, como Geoffrey Linchado, tentaram conquistar o seu amor. Finalmente, Usha começava a perceber que as pessoas a consideravam bela. E finalmente, Usha podia permitir-se meditar. Examinara-se no espelho e não se achara feia, talvez porque as imagens da incrível beleza dos Irdas começavam, no seu espírito, a desvanecer-se, tal como as rosas de Verão comprimidas entre as páginas de um livro.
De entre os homens que haviam tentado conquistá-la, ressaltava Palin. E embora dissesse constantemente para consigo que nunca mais o veria, a imagem de um mago de vestes brancas fazia sempre o seu coração pulsar mais rápido.
— Foi tão estranho — murmurou —, eu estar tão ocupada e embaraçada que nem dei por ele quando entrou!
Calou-se por um momento, para rever a lembrança, o maravilhoso e excitante calor que a invadira quando o ouvira pronunciar o seu nome, proferi-lo com tanto amor e saudade.
— E você retribuiu com mais mentiras — disse, ralhando para consigo mesma. As palavras deslizaram-lhe tão facilmente pela língua que as pronunciou sem dar por isso. — Mas não suporto pensar que vou perdê-lo de novo! — Deu um suspiro. — E agora, aparece aquele tio...
Relutante, Usha vestiu as suas velhas roupas, desconfiada com o seu inesperado aparecimento. Mas, ou eram aquelas ou a saia manchada de esterco e a blusa com nódoas de comida. Enquanto se vestia, tomou uma decisão.
— Vou encontrar Palin. O levarei daqui antes que possa falar com o tio, antes que descubra que eu não sou... a pessoa que ele julga. Faço isso para o seu próprio bem — tentou persuadir-se a si mesma.
Uma pancada suave veio interromper os castelos que ia construindo no ar.
— Usha? Sou eu, o Tas. Abra! Depressa! — A voz tinha uma entoação esquisita, como se viesse do buraco da fechadura, e depois de investigar Usha descobriu que era assim.
Abriu tão depressa a porta que Tas, perdendo o equilíbrio, entrou aos trambolhões.
— Olá, Usha! Importa-se que eu feche a porta? Parece que o Bertrem simpatiza muito comigo, pois disse-me que, em circunstância alguma, eu deveria sair do quarto e vaguear pela biblioteca sem ele para me acompanhar. Mas não gosto de incomodá-lo. Anda tão ocupado! Foi avisar o Astinus que estamos prontos.
Usha hesitou em fechar a porta.
— Onde está o Palin? — perguntou. — Pode levar-me ao quarto dele?
— Claro! — respondeu Tas alegremente. — Fica a dois quartos abaixo do teu e a um acima do meu. — Dirigiu-se na ponta dos pés para a porta, e espiou lá para fora. — Não queremos incomodar o Bertrem — disse, num sonoro cochicho.
Usha partilhava de bom-grado este sentimento. Verificando que o átrio se encontrava deserto, os dois esgueiraram-se e correram para o quarto de Palin.
A porta estava fechada. Usha bateu timidamente.
— Palin! — disse baixinho. — Palin, é a Usha e o Tas. Está... está vestido?
Não obteve resposta.
— Acho que alguém se aproxima! — avisou Tas, puxando Usha pela manga.
Usha preparava-se para bater de novo, mas sentiu a porta se abrindo.
— Palin? — chamou. Tas entrou.
— Palin, eu... Oh. Usha, pode entrar. O Palin não está aqui.
— Não está! — Usha entrou precipitadamente e relanceou o olhar pela sala. Demorou pouco, pois tratava-se de um quarto bastante exíguo. Viu espalhadas pelo chão roupas de tecido negro e macio, como se alguém as tivesse pegado e depois atirado ao assoalho. Pairava no ar o cheiro de esgotos, ainda presente nas marcas das botas dele pelo chão. Ainda era visível a marca redonda deixada pela ponta do bastão.
— Olha, há um bilhete aqui. — Tas apontou para uma folha de papel, como as que os magos utilizam para copiar os encantamentos, que se encontrava em cima das vestes negras. — É para você — comunicou o kender, pegando-a. — Vou ler...
Usha arrancou-lhe o bilhete e, com ar febril, pôs-se a ler.
A mensagem parecia ter sido escrita às pressas, pois a caligrafia estava quase invisível. O papel continha manchas de borrões de tinta e outras marcas que podiam ser de lágrimas. Usha leu as poucas palavras garatujadas e um calafrio, como se um vento cortante a perpassasse, fê-la estremecer da cabeça aos pés.
— Usha! — exclamou Tas, alarmado. A jovem ficara tão pálida! — Usha, o que foi? O que se passa?
Em silêncio, com as mãos como que entorpecidas, Usha estendeu o bilhete ao kender.
— “Usha, amo-te do fundo do coração. Lembre-se sempre...” Não consigo ler esta parte, está toda borrada. Tal e tal... “Fui para a Torre do Sumo-Sacerdócio”... tal e tal... “Steel... amor...” — Aterrado, Tas fez uma pausa. — Ele foi para a Torre do Sumo Sacerdócio!
— É o baluarte dos cavaleiros das trevas, não é? — perguntou Usha, desanimada, ciente da resposta.
— Agora é — respondeu Tas, deprimido. — Não costumava ser. Pergunto a mim mesmo por que terá ido lá. E sem nos levar!
— Foi dar cabo da vida! — replicou Usha, assustada e irritada ao mesmo tempo. — É o que diz o bilhete. Deu a sua palavra àquele... àquele cavaleiro horroroso, o Plâmula Cintilante, ou seja lá o que for. Precisamos encontrá-lo, impedi-lo! — Encaminhou-se para a porta aberta e acrescentou: — Os cavaleiros vão matá-lo. Vem comigo?
— Claro! — respondeu Tas prontamente. — Mas é provável que não foi a pé, Usha. É uma coisa que reparei que acontece com os magos. Não fazem exercício. E se o Palin usou da magia para se transportar até o bastião dos Cavaleiros de Takhisis, então corre um grande perigo. Acho melhor informarmos o Raistlin...
Usha fechou a porta com estrépito e encostou-se a ela.
— Não — disse. — Não contaremos a ninguém.
Estupefato, Tas deteve-se.
— Por que não, Usha? Se o Palin foi realmente para a Torre do Sumo-Sacerdócio, então vai precisar de auxílio, e eu sou ótimo para salvar pessoas, descobri que quase sempre ajuda ter um feiticeiro junto de nós... Ah, tinha me esquecido! Você é feiticeira, não é, Usha?
Usha pareceu não ouvir.
— Tas, alguma vez esteve na Torre do Sumo Sacerdócio?
— Ah, claro! — respondeu Tas, em tom descontraído. — Já estive lá dentro muitas vezes. A primeira foi quando eu e o Flint estávamos lá e a Kitiara atacou. Depois, os dragões apareceram voando e caíram numa armadilha. E eu quebrei o globo do dragão, foi um grande acidente. E o Sturm morreu. E a Laurana ficou com a lança do dragão.
Fez uma pausa, soltou um leve suspiro e acrescentou:
— Seja como for, conheço muito bem os interiores da Torre da Feitiçaria Suprema, em especial a localização da prisão.
— Ótimo — respondeu Usha —, porque é para onde vamos. Tenho uma idéia.
Encaminhou-se para as vestes negras, sacudiu-as e enfiou-as pela cabeça. Afogueada e arquejante, alisou o cabelo e cingiu a roupa ao corpo esbelto. As vestes assentavam-lhe bem. Ela e Palin eram quase da mesma altura. Atou-as em volta da cintura com um cordão de seda preto.
— Que acha? — perguntou. — Pareço-me com um feiticeiro Veste Negra?
— Bom — respondeu Tas, detestando ter que desapontá-la, mas ansioso por argumentar —, os cavaleiros não têm feiticeiros de vestes negras, só cinzentas.
— É verdade — retrucou Usha, desanimada.
— Mas! — exclamou Tas, todo excitado. — Têm sacerdotes Vestes Negras! Os vi andando em volta da torre!
— Tem razão! Serei uma sacerdotisa de Takhisis. — Usha calou-se e olhou, perplexa, para o kender. — E o seu disfarce?
— Também posso usar vestes negras! — respondeu Tas, ansioso
— Chiu — disse Usha, franzindo o cenho. — Deixe-me pensar.