Como, em geral, o significado da palavra “Chiu” não constava do dicionário kender, Tas continuou a papaguear.
— Uma vez, um sacerdote de Morgion... é o deus da pestilência e da doença... chegou a Kendermore à procura de convertidos. Como o Eiderdown Pakslinger sempre desejara ser sacerdote, ofereceu-se. O clérigo disse a Eiderdown que ele não era bem do gênero pretendido por Morgion, mas que iria aceitá-lo em experiência. Bom, logo na semana em que o Eiderdown envergou as vestes negras, quase todos os kenders de Kendermore adoeceram gravemente com uma constipação. Nunca se ouviram tantos espirros, tosses e assoadas de narizes!
— Quem ficou mais doente, foi o sacerdote de Morgion. Esteve de cama por uma semana, a colocar os bofes pela boca. Atribuíram a responsabilidade da epidemia a Eiderdown. E embora a constipação fosse um incômodo e esgotássemos todos os lenços, sentimo-nos orgulhosos dele... Coitado do Eiderdown, antes disso nunca tivera sucesso em nada! Eiderdown afirmou que, da próxima vez, tencionava fazer experiências com os calos e, depois disso, talvez com a tinha. Mas quando deixou de espirrar, o sacerdote de Morgion tirou as vestes negras de Eiderdown e abandonou inesperadamente a aldeia. Nunca chegamos a saber porquê...
— Não consigo me lembrar de nada — disse Usha, desistindo. — Se alguém nos detiver... espero que não aconteça... podemos só dizer que é meu prisioneiro.
— Tenho muita prática em fazer esse papel — respondeu Tas, com ar solene. — Como vamos chegar à Torre da Feitiçaria Suprema? Daqui até lá é uma distância que nunca mais acaba.
— Não iremos a pé. Tenho comigo os meus objetos mágicos. E sei como utilizá-los — acrescentou Usha com ar de admiração e orgulho. — A Sally Dale me ensinou. Vá ver se tem alguém lá fora.
Tas abriu a porta e relanceou o olhar pelo átrio. Julgou ver o tremular de vestes castanhas contornarem a esquina e aguardou para ver quem era, mas ninguém apareceu. Por fim, declarou que o caminho estava livre. Ambos saíram do quarto de Palin e precipitaram-se para o de Usha.
Uma vez lá dentro, a jovem começou a esquadrinhar o alforje.
Sempre ansioso para ajudar, Tas começou a vasculhá-lo também. Usha encontrou o objeto que procurava e, retirando-o cuidadosamente, fechou o alforje.
Voltou a abri-lo para soltar a mão de Tas que, inadvertidamente, ficara presa lá, e depois exibiu o objeto. Tratava-se de um cavalo em miniatura, feito em argila e pintado de verniz branco lustroso que, ao clarão da candeia, parecia irradiar fulgores. Tas susteve a respiração. Na verdade, era a coisa mais linda, mais encantadora, que vira na vida.
— Como funciona?
— Quando eu soprá-lo, nos transportará até à Torre da Feitiçaria Suprema, à velocidade do vento. Pelo menos foi o que a Sally pensou que faria.
Usha levou o cavalinho aos lábios e soprou-lhe nas narinas minúsculas.
As narinas cintilaram, o cavalo respirou fundo e, de repente, materializou-se no quarto um cavalo autêntico e enorme.
O animal era de uma alvura reluzente, como se estivesse ainda pintado de verniz e, impaciente, pôs-se a escavar o chão com os cascos e a relinchar.
Usha arquejou. A Sally Dale não dissera nada a respeito da materialização de um animal daqueles! Mas não teve tempo para arroubos... o estrépito que o animal fazia impediu-o. Tasslehoff, que já começara a trepar para a garupa, ajudou Usha, que nunca na vida montara qualquer tipo de animal e se mostrava apavorada com o tamanho do cavalo. Sentiu-se insegura e pouco firme no seu dorso nu.
Fincando os calcanhares, Tasslehoff segurou-se na crina.
— E agora? — perguntou, vendo-se obrigado a gritar para ser ouvido no meio da algazarra que o bicho fazia.
— Vamos para a Torre da Feitiçaria Suprema! — anunciou Usha.
— Como? — gritou Tas.
— Desejando! — respondeu Usha, fechando os olhos e formulando o desejo.
No gabinete de Astinus, Raistlin acomodou-se numa cadeira, embrenhando-se na leitura de um livro que o cronista acabara de completar e que se referia à queda de Qualinesti nas mãos dos cavaleiros das trevas, queda essa que fora consumada sem haver resistência.
Os cavaleiros e os seus dragões azuis sobrevoaram Qualinesti, agitando espadas e lanças, sem, contudo, atacar. No que se tornara quase um padrão de comportamento, Ariakan enviara um mensageiro, incumbido de exigir aos Elfos que se rendessem. Avistara-se em segredo com representantes do Senado elfo.
No reino elfo, as pessoas estavam divididas e, na origem, residia o pavor inspirado pelos cavaleiros montados nos dragões azuis que, impunemente, os sobrevoavam. Os Elfos enviaram mensagens aos dragões dourados e prateados, para que viessem em seu auxílio, mas não obtiveram resposta.
Nesta altura, uma facção de Elfos mais jovens exigira que a Nação pegasse em armas. Porthios e as suas tropas encontravam-se no deserto, de vigia a Ariakan e às tropas deste. Porthios não tencionava atacar uma força tão vasta recorrendo apenas ao seu pequeno bando de guerrilheiros mas, se os Elfos atacassem a partir do interior de Qualinesti, Porthios e os seus efetivos por seu turno atacariam e encurralariam os cavaleiros das trevas numa tenaz cada vez mais estreita.
Os Elfos preparavam-se para seguir este plano, quando apareceu um senador anunciando que Qualinesti aspirava à paz. O Senado votara a favor da rendição, com a condição de que o seu Rei — Gilthas, filho de Tanis Meio Elfo e de Laurana, agora viúva — continuasse a ser o regente.
O encontro quase terminara em tumulto. Muitos dos elfos mais jovens foram presos, acorrentados e conduzidos pela sua própria gente. Gilthas ficou observando em silêncio, sem dizer nada. Laurana, a viúva sua mãe, encontrava-se ao seu lado. Todos ficaram sabendo então que Gilthas não passava de um fantoche, que dançava sempre que os cavaleiros puxavam as cordinhas.
Pelo menos assim achavam.
Raistlin, prosseguindo a leitura, sorria de vez em quando.
O relógio de água ia assinalando a passagem do tempo e a pena de Astinus a registrava. Começou e terminou a Segunda Vigia. Do interior da biblioteca, veio um som estranho.
Raistlin levantou a cabeça.
— Um cavalo? — inquiriu, espantado.
— É isso mesmo — respondeu serenamente Astinus, continuando a escrever.
Raistlin levantou a sobrancelha.
— Dentro da Grande Biblioteca?
— É exatamente onde está — respondeu Astinus, sem parar de escrever. — Ou estava.
O som do cavalo foi substituído pelo de sandálias percorrendo apressadamente o assoalho.
— Bertrem, entre — disse Astinus, mesmo antes do monge bater à porta. Esta se abriu e assomou a cabeça de Bertrem. Vendo que o amo não ralhava por perturbá-lo, depois da cabeça apareceu o corpo do monge.
— Bem — perguntou Raistlin —, já partiram?
Bertrem olhou para o mestre.
Irritado, Astinus interrompeu o trabalhou e ergueu os olhos.
— Anda, responde à pergunta do arquimago! A mulher e o kender já partiram?
— Sim, mestre — respondeu Bertrem, dando um suspiro de alívio.
Em tempos, durante a guerra, Bertrem repelira um ataque de uns draconianos que pretendiam atear fogo na biblioteca. Contudo, nunca tivera pesadelos por causa deles. Os seus pesadelos eram povoados pelos kenders — kenders a perambular pela Grande Biblioteca, kenders com os bolsos abarrotados de livros.
— Já se foram. Trouxeram um cavalo! — acrescentou, chocado e em tom de censura. — Um cavalo na Grande Biblioteca!
— Um acontecimento digno de registro — observou Astinus, anotando-o. Olhando de relance para Raistlin, acrescentou: — Foram salvar o seu sobrinho. Espanta-me não acompanhá-los.
— Estou com eles, à minha maneira — respondeu Raistlin, retomando a leitura.