“Os gnomos que permaneceram fora das muralhas do castelo e que trabalhavam na sua invenção mais recente — a besta rotativa de tiroteio cerrado, conhecida por Besta Garding por causa do seu inventor, Garding Parafusos Soltos — revelaram-se imunes aos efeitos do clarão mágico da Pedra Cinzenta. Presumiram que tal se devia ao óleo para as tochas que serviam para iluminar o campo de batalha à noite e que, com esse objetivo, fora enviado num balão cheio de gás. A produção do gás fazia-se mediante uma técnica nova e muito complexa para ser descrita aqui, mas que incluía suco de limão, forquilhas de metal e água. Os que sobreviveram à explosão que se seguiu, permaneceram gnomos.
“A Pedra Preciosa Cinzenta desapareceu no horizonte. Reorx e os demais efetuaram várias tentativas para capturá-la. A Pedra Cinzenta permite que as pessoas a apanhem. Utiliza-as em prol dos seus próprios objetivos — ou possivelmente para se divertir — e, quando cansada da brincadeira, liberta-se delas. A Pedra Cinzenta “escapa”.
“Mas agora, nós, os Irdas, a temos em nosso poder. Somos os primeiros a vergá-la à nossa vontade, pelo menos é o que o Juiz afirma. Esta noite irá quebrá-la e ordenar à magia nela contida que nos proteja, e à nossa Pátria, das incursões da Humanidade para sempre.”
Terminava aqui a missiva para Dalamar, escrita na caligrafia meticulosa e bem delineada de Prot. Uma nota ao canto, pelo mesmo punho, embora menos nítida, como que a acusar o tremor da mão, dirigia-se a Usha.
“O meu amor e preces acompanham-te, filha do meu coração, do meu corpo.
“Reze por nós.”
Usha meditou longamente no pós-escrito. Partes da narrativa fizeram-na rir. Amiúde o Protetor a entretera com “histórias de gnomos”, como lhes chamava. Das poucas vezes em que o vira sorrir, fora quando descrevia a fantástica maquinaria dos Gnomos. Sorriu ao recordá-lo, mas o sorriso desvaneceu-se lentamente.
Será que apenas a sua mente humana conseguia enxergar o perigo?
Apercebeu-se que não. Prot também o via e conhecia-o. Por isso lhe entregara o rolo de pergaminho. Os Irdas estavam desesperados. A intromissão dos estrangeiros — rudes, bárbaros, a feder sangue e aço — deixara-os apavorados. Agiam em defesa de um modo de vida que conheciam há uma eternidade de gerações.
Usha deixou tombar a carta no regaço. Os olhos marejaram-se de lágrimas, mas já não se tratava de lágrimas de autocomiseração. Eram lágrimas de saudade e de amor pelo homem que a criara. Tais lágrimas, assim acreditavam os Elfos, emanavam de uma fonte diferente. Provinham do coração e, embora causadas pela dor, tinham o estranho condão de suavizar a dor.
Exausta, embalada pelo movimento da embarcação e pelo roçagar do vento entre os cordames, Usha chorou até adormecer.
5
O altar e a Pedra Preciosa Cinzenta.
O duende chega tarde.
A pedra é quebrada.
Os Irdas não voltaram a se reunir. Quando chegou a hora de quebrar a Pedra Cinzenta — altura em que nenhuma das luas se encontrava visível no céu, em particular Lunitari que, segundo rezava a lenda, ainda cobiçava a gema — o Juiz encaminhou-se, sozinho, para o altar onde a pedra repousava.
Os outros Irdas permaneceram nas habitações independentes, cada um a trabalhar na sua magia, cada um prestando auxílio ao Juiz. Havia força na solidão, pelo menos era o que os Irdas acreditavam. Quando um se torna em muitos, a concentração é perturbada e as energias fragmentam-se.
O altar no qual os Irdas depositaram a pedra, situava-se no centro geográfico da ilha. O altar distava um pouco do que os Irdas designavam por aldeia, embora esta, aos olhos de qualquer outra raça, não passasse de um amontoado disperso de habitações. Os Irdas não pavimentavam as ruas, não abriam mercados, não compareciam a reuniões. Não construíam templos ou palácios, estalagens ou tabernas, apenas casas, dispostas ao acaso em torno da ilha, cada uma delas construída no ponto onde o respectivo dono considerasse mais confortável.
O altar encontrava-se decorado com madeira polida, na qual se viam entalhados símbolos arcanos intrincados. Erguia-se numa clareira da floresta, tendo ao redor sete pinheiros gigantescos, transportados para aquela ilha de um local secreto em Ansalon.
Tais árvores eram tão centenárias que possivelmente tinham presenciado a passagem da Pedra Preciosa Cinzenta da primeira vez que esta escapara à alçada de Reorx. Parecia que o seu objetivo era não deixar a Pedra escapar de novo. Os galhos das árvores encontravam-se entrelaçados e unidos, formando uma sólida muralha de cortiça, agulhas, pernadas e ramos que dificultavam a passagem, até a um deus.
O Juiz deteve-se em frente do pequeno bosque de pinheiros e pediu a bênção aos sete espíritos que os habitavam.
Os pinheiros permitiram ao Juiz franquear a clareira e, mal o fez, voltaram a cerrar-se. Os seus ramos maciços pairavam acima da cabeça dele.
Levantou os olhos e não conseguiu enxergar uma única estrela, e muito menos uma constelação, nem tampouco Takhisis ou Paladino. Não vendo-os, veio-lhe a esperança de não o vislumbrarem também. O dossel formado pelas agulhas dos pinheiros sagrados esconderia o Juiz e a Pedra Preciosa Cinzenta de quem possivelmente tentasse interferir.
As trevas do minúsculo pinhal seriam impenetráveis, não fosse a luz derramada pela Pedra, embora se tratasse de um fulgor tênue, lúgubre, quase um pálido vislumbre.
“É quase como quando estamos de mau humor”, pensou o Juiz.
Mas a luz que emanava da Pedra Preciosa Cinzenta era suficiente para ele enxergar em redor. Se quisesse, poderia ter invocado a sua magia para imprimir ao bosque a claridade do dia, mas preferiu não chamar atenção para o que estava fazendo. Quem sabe se algum olho mortal não enxergaria tal fulgor mágico, pondo-se a questionar sobre o que se passava. Assim, sentiu-se grato à Pedra Cinzenta pela sua colaboração.
Concentrado, calmo, o Juiz avançou e postou-se junto ao altar. Regozijava-se por se encontrar só, na solidão que os Irdas tanto prezavam. No entanto, sentia dentro de si os espíritos e as mentes do seu povo. Inclinou a cabeça e imbuiu-se dessa energia. Depois, segurou na Pedra Preciosa Cinzenta com ambas as mãos e analisou-a intensamente.
A gema tornava-se desagradável ao tato. Era áspera e macia, quente e fria, e parecia querer esquivar-se ao seu abraço. Ao segurá-la, a luz cinzenta começou a palpitar cada vez com mais força, até lhe magoar os olhos. Aumentou o controle mental sobre a Pedra Cinzenta e o fulgor enfraqueceu, tornou-se submisso. Com os dedos, o Juiz percorreu a superfície da gema, fazendo-os deslizar pelas faces macias e tateando cada aresta pontiaguda, num gesto de procura, de indagação. Por fim, encontrou o que buscava, o que descobrira da primeira vez que manuseara a Pedra, o que lhe dera a inspiração.
Uma falha. Mais precisamente, uma oclusão. Sentiu-a antes de vê-la. Tal como os insetos que podem ser encontrados no âmbar, ao que parece, durante a formação da Pedra Preciosa Cinzenta, um tipo de matéria estranha qualquer ficara aprisionada no interior desta. Tal ocorrera possivelmente pelo arrefecimento da gema causar a precipitação dos minerais e estes ficarem aprisionados na complexa cristalização. Pelo menos era a teoria do Juiz. A substância estranha não era, em si, significativa. Importava, sim, que existia uma área vulnerável e que era nela que se formariam rachas.
O Juiz voltou a depositar a Pedra no altar. Os símbolos arcanos esculpidos na madeira teciam um feitiço e mantinham a Pedra Preciosa Cinzenta subjugada.
Ao colaborar no feitiço, o Juiz teve a estranha sensação de que a magia não era necessária, que a Pedra Cinzenta permanecia no altar porque queria permanecer ali e não por se encontrar presa.
Tal impressão não foi particularmente tranqüilizadora. O Juiz precisava exercer domínio sobre a gema, não o contrário. Por isso, reforçou a magia.