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— Meu senhor, Sua Santidade mostrava-se extremamente angustiada. Desde esta manhã, quando se deslocou às celas da prisão para visitar o condenado, que parecia distraída, preocupada. Sua Santidade aproximou-se do altar para rezar uma oração. Efetuava os sacrifícios rituais, quando roçou com o braço num frasquinho com óleo sagrado e o derramou por cima do altar. De um dos candelabros tombou um pouco de cera ardente, ateando fogo. Este se alastrou rapidamente, consumindo os sacrifícios antes dos mesmos serem adequadamente ungidos. A Suma-Sacerdotisa fitou as chamas com uma expressão de tamanho horror estampada no rosto, que a recordarei enquanto viver. Depois, meu senhor, tombou diante do altar em chamas. O fogo extinguiu-se, mas quando tentamos levantar Sua Senhoria verificamos que estava morta.

Os cavaleiros ouviram a história mergulhados num silêncio que parecia abarcar o mundo. A voz da Dama da Noite quebrou-o, tão incômoda como uma pedrinha arremessada à quietude das águas.

— Meu senhor, eu bem te disse! São os enleios deste Veste Branca! E daquele também! — acrescentou, apontando subitamente para Steel. — Estão combinados! São ambos traidores! São eles os responsáveis pela morte de Sua Santidade!

— Comandantes, mandem destroçar os homens! — ordenou Ariakan. — Que regressem aos seus postos. Dama da Noite, leve Palin Majere para uma cela. Ficará detido para mais interrogatórios. A sentença de morte será adiada até o assunto estar resolvido. Parto para o templo, a fim de proceder a mais investigações. — Ariakan virou-se para partir.

Com um assomo de arrojo, Trevalin exclamou:

— Meu senhor!

Irritado, Ariakan olhou por cima do ombro e perguntou:

— Sim, subcomandante, que deseja?

— Meu senhor, dado que Steel Montante Luzente foi redimido e por não existirem acusações substanciais contra ele, solicito que lhe restitua o posto a que tem direito e o coloque sob o meu comando.

— Liberte-o e incorre em perigo, Lorde Ariakan! — exclamou Lillith em voz melíflua e letal. — Liberte-o e a cavalaria cairá!

Ariakan fitou Lillith com desagrado. Depois, olhou para Steel e encolheu os ombros.

— Muito bem, subcomandante — disse. — Montante Luzente, dou-lhe permissão para voltar ao seu batalhão, mas não pode abandonar a fortaleza.

O Senhor de Ariakan encaminhou-se para o Templo de Takhisis, que fora erigido temporariamente nos terrenos exteriores das muralhas da Torre da Feitiçaria Suprema. Embora, em termos oficiais, os cavaleiros das trevas governassem a cidade, haviam constatado ser impossível levar para o interior da torre quaisquer objetos sagrados em honra a Sua Majestade das Trevas.

Abanando a cabeça perante a loucura do seu suserano, a Dama da Noite deu ordem de prisão a Palin. Os feiticeiros manietaram-lhe os braços, despojaram-no dos componentes de encantamento e amordaçaram-no. Contudo, o mago segurava ainda o Bastão de Magius.

A Dama da Noite aproximou-se. Comprimindo fortemente os lábios, determinada a não revelar a mínima fraqueza, estendeu a mão e, com um gesto súbito, apoderou-se do bastão, estremecendo face à perspectiva da dor.

O seu rosto desanuviou-se, suavizou-se. Olhou para o bastão, primeiro com ar estupefato, depois, com triunfo. Exultando, libertou-o do aperto de Palin.

Este, ficou aguardando que o bastão reagisse e punisse a Dama da Noite pela sua audácia.

Nada aconteceu. O bastão podia muito bem passar por um cajado qualquer.

— Parece que o Bastão de Magius escolheu um novo amo — disse Lillith. — Eis o testemunho da aprovação de Sua Majestade das Trevas. O meu senhor tem que ficar a par da verdade. — Sorrindo de um modo sutil, enigmático, acrescentou: — E ficará. Há de constatá-lo com os seus próprios olhos.

Acariciando o bastão e afagando com os dedos a madeira suave, a Dama da Noite fez um gesto aos guardas para que levassem o jovem mago.

Quando se sentiu arrastado pelos Vestes Cinzentas, Palin dirigiu a Steel um último olhar.

Tem que acreditar em mim — disse-lhe em silêncio. — Tem que convencê-lo!

Steel permaneceu impávido, mas os seus olhos pensativos seguiram o jovem até este sair do pátio. E mesmo depois de o levarem, Steel continuou ali parado, de olhos fixos.

Dando uma palmada nas costas de Steel, Trevalin interrompeu-lhe os devaneios.

— Parabéns, Montante Luzente! — exclamou. — Salvo das garras da morte! Como se sente? Exultante? Aliviado?

— Confuso — respondeu este.

15

Desassosego.

Os trilhos se cruzam.

A trovoada seca.

Steel dirigiu-se para os alojamentos onde se encontravam os cavaleiros do seu batalhão. Por recomendação pessoal do Senhor de Ariakan, restituíram-lhe a armadura e — o mais importante — a espada. Depois, tomou o desjejum com o subcomandante Trevalin e os camaradas, que pretendiam escutar as aventuras vividas pelo cavaleiro e o Veste Branca.

Steel não se sentia com vontade de falar de Palin. Manteve um silêncio macambúzio, respondendo com frases curtas às perguntas dos amigos. Vendo-o renitente em falar, os cavaleiros mudaram de assunto e referiram-se às incursões recentes a Qualinesti, à batalha que nunca aconteceu.

— Elfos! — escarneceu Trevalin. — Já vi sapos mais honrados. Pela calada da noite, rastejaram até nós. Alguns dos seus próprios senadores ofereceram-nos Qualinesti de mão beijada... cuspida. Um deles... como se chamava?

— Rashas — sugeriu um cavaleiro.

— Sim, Rashas. Proferiu um longo discurso a respeito da integridade e da nobreza dos Elfos... por oposição à ausência, em nós, de tais qualidades... e depois, sentou-se calmamente e assinou os papéis que subjugavam o povo deles a sola da bota do meu suserano. Tudo muito civilizado — acrescentou Trevalin, soltando uma gargalhada. — O regente deles não passa de um rapazola. Esse tal Rashas tem o garoto pela trela. A propósito, Montante Luzente, é o filho de Tanis Meio Elfo.

Steel, que estivera pensando noutras coisas, levantou a cabeça.

— Quem? — perguntou.

— Gilthas, o suserano dos Elfos, acho que é esse o nome. Palavras viscosas de elfo... saíram-me a deslizar pelo ouvido. Uma coisa é certa, o rapaz não tem a garra do pai. Nem tampouco da mãe, se dermos crédito a todas as histórias que se contam a respeito do General Dourado.

— Trevalin, não estou assim tão certo — argumentou um dos cavaleiros. — Ele pode ficar sentado no trono tão dócil e calado como um rato, mas às vezes dá as suas olhadas... Bom, se eu fosse aquele senador gordo, manteria os olhos no garoto.

— Ora! — exclamou Trevalin, sardônico. — O único elfo que vale alguma coisa é esse tal Porthios. Ora aí está um lutador! E, vejam lá como são os Elfos, o único chefe bom que tinham, enviaram para o exílio. Dizem que vive como um bandido.

— Correm notícias de que ele e os seus guerrilheiros atacaram o acampamento do Batalhão Vermelho — observou outro cavaleiro. — Mataram três dragões e fugiram antes de alguém dar pela sua presença.

— Não duvido — concordou Trevalin. — É esperto, apto e para um elfo, possui rasgos de honra, assim ouvi dizer. Podia defrontá-lo em combate sem sentir vontade de tomar um banho depois. Sempre que esse elfo Rashas se aproximava de mim, me dava vontade de retirar a porcaria das mãos.

Continuaram a falar sobre a guerra, mas Steel deixou de prestar atenção. Ainda ouvia as palavras de Palin. Perpassaram-lhe a mente, misturadas com o canto da melodia que os cavaleiros prisioneiros tinham entoado em sua honra. Steel recordava-a vagamente de outras épocas, embora não conseguisse lembrar-se onde. Possivelmente durante a guerra, quando, em criança, vivera em Palanthas. Ao longo de 20 anos, não pensara nela. Contudo, a toada, solene, reverente, fora em sua memória, fora um hino de vitória, que honrava o altruísmo, embora o ensombrasse a tristeza da perda irreparável. Desconhecia as palavras, em Solâmnico antigo, mas pouco lhe interessava, pois o que ouvia, destacando-se da toada, como o azeite à tona da água, eram as palavras de Palin.