Выбрать главу

Palin conseguia ouvir os guinchos enrouquecidos, os gritos de tortura, o estertor dos moribundos. Por mais de uma vez virara, temeroso, a cabeça, crendo sentir atrás de si o bater frenético de asas. Mas os sons residiam todos na sua imaginação, a menos que os fantasmas dos dragões e dos cavaleiros ali chacinados na luta encarniçada, prosseguissem a batalha num outro plano qualquer. Neste domínio de existência, as armadilhas eram sombrias, tão frias como qualquer local sob o Sol ardente, e impregnadas dos ruídos furtivos que se associam aos feiticeiros: o arranhar da pena que escrevinha um encantamento, o recitar sussurrante de alguém tentando memorizar um encantamento, o papaguear monótono de um outro a decifrar as palavras mágicas, o roçar de vestes a atravessarem o chão poeirento.

Palin tivera tempo para escutar os sons — os dos vivos e os dos mortos. Não fora torturado nas mãos da Dama da Noite, como esperara. Nem tampouco fora morto, coisa que também esperava. Parecia que o haviam esquecido. Ficara abandonado ali, nos recessos da fortaleza, longe do Sol causticante, e por tanto tempo, que perdera a noção. Desde a sua chegada à fortaleza, podiam ter decorrido horas ou dias, tanto fazia. Ninguém se aproximava, ninguém lhe dirigia a palavra.

A mordaça, atada firmemente na boca, obrigava-o a manter os maxilares abertos e fazia-o sentir que ia sufocar. Tinha sede e a garganta inflamada e ressequida. As amarras que lhe prendiam os pulsos impediam que a circulação se fizesse. Estava acorrentado pelo tornozelo à perna de uma grande mesa de mármore cinzento, toda marcada com símbolos cabalísticos.

Mediante grunhidos e crocitos incoerentes, tentara uma vez comunicar a necessidade desesperada que tinha de água, mas o mago que na altura passara, ignorara-o e nem se detivera.

A Dama da Noite espoliara-o do Bastão de Magius, e possivelmente seria este o seu mais amargo tormento, que transcendia a mordaça, a sede, a incerteza e o medo. Com o bastão, desvanecera-se a voz do tio. Palin sentia-se realmente só — coisa que não experimentava desde que tomara posse do bastão.

Interrogou-se quanto ao que os Cavaleiros Cinzentos pretendiam fazer com ele e quando, e por que motivo nada tinham feito até então. Quanto mais tempo decorria sem acontecer nada, mais ele se sentia receoso. No pátio, quando falara com o Senhor de Ariakan e se vira rodeado pelo inimigo, não experimentara uma ponta de medo. Nem mesmo quando olhara para o cepo e vira o sangue coagulado e impregnado na cavidade medonha. Nessa altura, podia ter morrido com dignidade, sem desgosto, a não ser a mágoa de saber a tristeza que a sua morte causaria aos entes queridos.

Enquanto se encontrava ali sentado, imerso na quietude das trevas, o medo fora crescendo aos poucos. Os seus pensamentos começaram a perambular, chegando por vezes a lugares horríveis. Olhou em redor, para as armadilhas para dragões, viu como funcionavam, avistou os buracos através dos quais os cavaleiros atacavam com as lanças. Os dragões mortos eram dragões ruins, do Mal, criaturas da Rainha das Trevas, dragões vermelhos e azuis, que haviam chacinado um número incontável de inocentes, torturado e atormentado as suas vítimas.

Colocado num pedestal, no coração da torre, o globo do dragão atraíra-os para uma armadilha, chamando-os com palavras mágicas às quais não conseguiram resistir. Depois de voarem para o interior dos portões escancarados, a armadilha fora acionada. As pontes levadiças desceram com estrondo e os dragões não puderam escapar. Os cavaleiros atacaram com espadas, lanças e setas. Ao visualizar a forma como morreram — encurralados, frenéticos, feridos, gritando de raiva e de agonia — Palin sentiu no coração uma réstia de piedade pelas criaturas magníficas e condenadas.

Por fim, cedeu à exaustão e cochilou, para de novo acordar, sobressaltado com os sonhos pavorosos que o acossavam, nos quais só havia sangue, dores excruciantes e, acima de tudo, o pavor de ser apanhado numa armadilha, sem que não houvesse uma saída, a não ser a morte.

Resoluto, expulsava as imagens do espírito, mas estas voltavam, com uma insistência aflitiva. Não conseguia compreendê-las, mas perturbavam-no, e o medo foi crescendo. O horror de ser deixado sozinho naquele lugar pavoroso começou a consumi-lo, até o pensamento da tortura, se ao menos a dor trouxesse consigo um rosto vivo, uma voz viva, quase lhe parecia agradável.

De modo que, quando a Dama da Noite regressou, trazendo na mão o Bastão de Magius, Palin sentiu uma alegria irracional por vê-la.

Mas foi de pouca duração.

A Dama da Noite segurou o bastão diante dele. De início, nenhum pensamento ocorreu à mente perturbada de Palin. Depois, lembrou-se que, da primeira vez que a Dama da Noite tentara agarrar o bastão, este a queimara. Sentiu um baque de medo no coração. Será que conseguira ascendência sobre o bastão? Será que o bastão o abandonara?

Shirak — exclamou Lillith, com voz triunfante. O cristal que sobrepujava o bastão, irradiou um fulgor sombrio e bruxuleante, como se relutasse em obedecer.

Palin baixou a cabeça, para que ela pensasse que a luz o incomodava. Na verdade, tentava esconder da mulher as lágrimas.

Rindo, a Dama da Noite encostou o bastão à mesa, a uma distância mínima de Palin.

— Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, o bastão viria até mim! Vi nas pedras videntes! Que disse?

Palin grunhira algo. Com um rápido puxão, a Dama da Noite retirou-lhe a mordaça da boca.

Depois de tentar umedecer os lábios ressequidos, conseguiu balbuciar:

— Água.

— Sim. Já imaginava que tinha sede — respondeu a Dama da Noite, destapando um odre de água e derramando o líquido na boca de Palin.

Este sorveu avidamente, engasgou-se e olhou para a mulher, com os olhos enevoados.

— Por que não me mata já? O que está esperando?

A Dama da Noite esboçou um sorriso desagradável.

— Não adivinha? Só depois do lobo enfiar a cabeça no laço, é que o caçador mata o coelho.

Passado um instante é que Palin entendeu o que a mulher dissera. Quando, por fim, compreendeu, olhou-a fixamente.

— Está preparando uma cilada? Para quem? Para o meu tio? — perguntou, quase soltando uma gargalhada. — Quem me dera viver o tempo suficiente para presenciar esse encontro!

A Dama da Noite devolveu-lhe o sorriso.

— Eu também — respondeu com brandura. Depois, encolheu os ombros e respondeu: — Fica para mais tarde. A cilada não se destina ao seu tio, mas a outro membro da sua família.

Pensando que se referia à mãe ou ao pai, Palin abanou a cabeça, desconcertado. Depois, ocorreu-lhe outro pensamento.

— Steel?...

Os olhos da Dama da Noite faiscaram.

Ao vê-la erguer uma sobrancelha, desta vez Palin não riu, emitindo um som que lembrava um grasnar.

— Não apanhará esse lobo com este coelho. O que você acha? Que ele se preocupa comigo o bastante para tentar me libertar? — Divertido com o pensamento, Palin soltou uma gargalhada.

Inclinando-se, a Dama da Noite aproximou-se, como que a tentar sorver-lhe a gargalhada, arrastar a sua luz para a escuridão dela.

— Sua Majestade reuniu-os por um motivo qualquer. Muitas vezes lancei as pedras videntes e a resposta foi sempre a mesma. Olhe, vou lançá-las de novo.

De uma bolsa preta que trazia presa ao pulso esquerdo, Lillith retirou um punhado de ágatas polidas. Pegando nelas, murmurou as palavras de encantamento e arremessou-as para a superfície de mármore cinzento. O fulgor do bastão, refletido nas ágatas multicoloridas, tornou-se mais vivo.