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Vendo a morte descer sobre si, a Dama da Noite tentou escapar rastejando, mas não foi suficientemente rápida. As barras de ferro, pontiagudas como lanças, feitas para trespassar a pele dura e escamosa dos dragões, perfuraram com facilidade a carne mole da Dama da Noite. As pontes levadiças tombaram com estrondo no chão de pedra, prendendo por baixo o corpo trespassado de Lillith.

Esta soltou um guincho pavoroso e enclavinhou as mãos nas barras que a tinham empalado, como se pudesse soltá-las. Das feridas horríveis esguichou o sangue. Afrouxando o aperto, as mãos resvalaram, quase inertes, para o chão. Os dedos afloraram o Bastão de Magius e estrebucharam de leve. A bolsa com as pedras divinatórias abriu-se, e as ágatas espalharam-se pela poça de sangue, que ia aumentando. Os seus olhos tornaram-se vítreos, a mão que segurava o bastão contraiu-se e ficou flácida.

O Senhor de Ariakan olhava, apavorado, para o cadáver. A barba negra formava contraste com a palidez do seu rosto. A pele reluzia de suor.

— Já vi muitas formas de morrer, mas poucas foram tão horríveis como esta! É um sinal! Que a nossa Rainha tenha piedade da sua alma!

Olhou de relance em volta, como que à procura de alguém. Avistando Palin, acenou-lhe com a mão.

— Você, Majere! Aproxime-se. Não receie. Quanto ao que me contou lá em cima, no pátio, sobre o Caos tentar nos destruir. Será o começo?

Palin hesitou e respondeu, sereno:

— Meu senhor, acredito que seja, mas não posso assegurar.

Ariakan inspirou fundo e expirou lentamente. Limpando o suor que lhe alagava o rosto, disse:

— Veste Branca, precisamos ter outra conversa. Montante Luzente, traga-o contigo. Vocês dois, acompanhem-me.

Palin fez um gesto em direção a Usha e a Tasslehoff.

— Quero que os meus amigos também venham — disse. — Quero me assegurar de que não correm perigo.

— Muito bem! — exclamou Ariakan, impaciente. — Saiamos daqui antes que a maldita torre desabe em cima das nossas cabeças!

— E — prosseguiu Palin, sem se mexer — quero o meu bastão.

— Leve-o! — Ariakan mostrava-se soturno. — Duvido que mais alguém queira essa coisa amaldiçoada. Montante Luzente, leve os três para os meus alojamentos.

— Sim, meu senhor — respondeu Montante Luzente.

O Senhor de Ariakan afastou-se apressadamente, deixando os quatro sozinhos nas armadilhas para dragões.

Palin dirigiu-se para o lugar onde, sob as barras de ferro, jazia a Dama da Noite, esparramada no seu próprio sangue coagulado. Quando se inclinou para retirar o bastão, reparou nos seus olhos vítreos, no seu rosto contorcido pela dor. Chegou-lhe ao nariz o cheiro do sangue ainda quente.

Fora o bastão a matá-la? Será que a atraíra para uma cilada, guiando-a deliberadamente? Ou não passara de um mero acidente? A mão de Palin, que se preparava para agarrar o bastão, deteve-se, trêmula.

Usha foi ter com ele e rodeou-lhe o braço com as mãos. O mago apoiou-se, num gesto de gratidão.

Com a ponta do penacho, Tas limpou o sangue dos olhos.

— Apresse-se, Palin! — exclamou. — Quero ver o que se passa!

— Majere, se te melindra tanto assim, deixe que eu tiro o bastão — disse Steel, com repugnância.

Palin empurrou o cavaleiro para trás e, mantendo os olhos grudados no bastão, inspirou fundo, baixou-se e retirou-o da mão da morta.

Depois, começou a endireitar-se.

Diante dele, encontrava-se um vulto de vestes e capuz negros.

Alarmado, Steel desembainhou a espada, mas Palin deteve-o precipitadamente.

— Não! É o meu tio! — exclamou.

Raistlin olhou para Steel, parecendo pouco interessado, e depois fitou Palin.

— Portou-se bem, sobrinho.

— Tio, como... — começou Palin a dizer.

Ouviu-se um ribombo surdo, que parecia vir do chão e não dos céus, e o chão por baixo dos pés deles começou a rodopiar. Próximo, veio-lhes o estrépito de algo a estilhaçar-se.

— Não há tempo para perguntas — respondeu Raistlin. Agarrando Palin, fez um gesto a Usha e a Tasslehoff para que se aproximassem. — Dalamar providenciou a minha viagem. Aguarda-os na Torre da Feitiçaria Suprema.

— Palin, não vai a parte nenhuma — interveio Steel, com voz soturna —, a não ser à presença de Lorde Ariakan. Você e o teu tio.

Palin hesitou.

— Prometi que falaria com o Ariakan. Não seria possível nós...

— O tempo para conversas já se esgotou. A batalha começou. O próprio Ariakan já se envolveu nela.

Raistlin fixou Steel.

— Filho do Montante Luzente, a tua espada é necessária noutro lugar. Permita-nos que nos retiremos em paz.

Steel pôde constatar por si a veracidade desta afirmação. O fragor da batalha já penetrara nos recessos da torre.

Raistlin avançou em passos rápidos, com as vestes negras a roçagarem o chão. Steel olhou-o, circunspecto, e embainhou a espada.

— Reconheço essa lâmina — observou Raistlin com voz serena. — Era do teu pai, não era? Nunca gostei muito do teu pai. Todas aquelas tretas sobre a honra e a nobreza dos cavaleiros. Fazia um tal alarde disso, pavoneava-se, atirava na nossa cara.

Steel nada disse, mas a mão enclavinhou-se no punho da espada, até os nós dos dedos ficarem esbranquiçados. Raistlin aproximou-se.

— Foi então que descobri uma coisa muito interessante a respeito do teu pai. Ele nos mentiu. Sturm Montante Luzente era tão cavaleiro como eu. Só foi investido pouco antes da sua morte. E durante esse tempo todo, usou armadura, andou com a espada... e era tudo mentira.

Encolhendo os ombros, Raistlin acrescentou:

— Sabe do que mais? Depois que descobri, simpatizei mais com ele.

— Porque achou que ele desceu ao mesmo nível que você — respondeu Steel, com voz rouca.

Raistlin esboçou um sorriso ambíguo, amargo.

— Era o que você pensaria, não era, Montante Luzente? Mas não, não foi esse o motivo.

Raistlin acercou-se ainda mais e ficou tão próximo que Steel podia sentir o frio gélido que emanava do corpo frágil do mago, ouvir a respiração farfalhar-lhe nos pulmões, experimentar o toque macio do veludo preto.

— O teu pai mentiu a todo mundo, menos a uma pessoa... ele mesmo. No fundo do coração, o Sturm era um cavaleiro. Tinha mais direito a reclamar esse título falso do que muitos que o usam por direito próprio. O Sturm Montante Luzente obedeceu a leis que não lhe foram impostas. Viveu segundo um código de nobreza no qual ninguém mais acreditava. Fez um juramento que ninguém ouviu. A não ser ele mesmo... e o seu deus. Ninguém poderia mantê-lo preso a esse juramento, à Medida. Ele o fez por si, porque se conhecia.

— Steel Montante Luzente, quem é você? — Os olhos dourados, em forma de ampulheta, de Raistlin, cintilaram. — Sabe?

O rosto de Steel tornou-se exangue. Abriu a boca, mas as palavras não lhe brotaram dos lábios. Uma lágrima deslizou-lhe pela face. Baixou a cabeça, num gesto tão brusco que o longo cabelo preto lhe tombou para frente.

Irado, embainhou a espada. Virou-se e, sem olhar para ninguém, correu para as escadas e para o clamor da batalha.

18

Todos devem se unir num só.

Raistlin encontrava-se nos aposentos dos pisos superiores da Torre da Feitiçaria Suprema, em Palanthas, postado a uma das janelas. O arquimago estava de volta ao seu antigo gabinete, uma sala que, para surpresa sua e algum regozijo, Dalamar mantivera tal como o seu shalafi a deixara. O gabinete não fora encerrado ao mundo, como acontecera com o laboratório, que encerrava artefatos poderosos e perigosos, assim como segredos perturbadores e sinistros.

Do gabinete tinham sido retirados certos objetos, sobretudo os de natureza mágica, e possivelmente transferidos para os aposentos de Dalamar ou, quem sabe, para as salas de aulas, onde jovens magos os estudavam e praticavam a arte de desvendar os mistérios arcanos. Mas a escrivaninha de madeira, com entalhes intrincados, ainda se encontrava lá. Nas prateleiras viam-se livros que eram velhos amigos, e as suas encadernações, familiares, mais familiares do que os rostos das pessoas do passado de Raistlin. A tapeçaria que cobria o assoalho, continuava a ser a mesma, só que mais puída.