— Fui destacado para uma missão importante — disse, em tom solene. — E não quero ir sobrecarregado.
— Agora sei que nos aproximamos do Fim do Mundo — murmurou Dalamar.
— Eis a entrada — respondeu Raistlin. — Sim, está vendo. Lembrei-me corretamente.
Dalamar inclinou-se para o livro. Os dois puseram-se a ler, murmurando de vez em quando estranhas palavras em voz alta.
Palin esforçava-se para ouvir. As palavras pareciam elfas, mas deviam ser elfo antigo, pois em cada 20, apenas conseguia entender uma. Vendo o tio absorto, Palin aproximou-se de Usha.
Esta encontrava-se aninhada numa cadeira, olhando receosa o clarão vermelho que iluminava o céu.
Palin pousou-lhe a mão no ombro, para reconfortá-la. Ela segurou-a e apertou-a com força.
— Temo por eles — disse, com voz embargada. — Aquele clarão... é o mesmo que vi na noite em que parti. Só que... agora é muito mais forte. Palin, estou preocupada. O que o teu tio disse está certo. Eles... nós... trouxemos a desgraça a todo mundo!
— Não se preocupe — respondeu Palin, em tom gentil e acariciando-lhe o cabelo luzidio. — Os Irdas são fortes na magia. Quando eu voltar...
Usha ergueu a cabeça e olhou-o.
— Que quer dizer com “quando eu voltar”? Onde vai? Vou contigo! — exclamou, levantando-se e estreitando as mãos de Palin nas suas.
— Então, o assunto está arrumado — declarou Dalamar, endireitando-se.
— Sim, acho que sim — murmurou Raistlin. Começou a tossir, mas recuperando de imediato limpou a boca com o lenço.
Bateram à porta, que se abriu em silêncio. Entrou Jenna.
— Dalamar — disse, com brandura —, chegou o momento. Tenho os componentes de encantamento e os pergaminhos que pediu.
— Tenho que ir — disse Dalamar. — Não há tempo a perder. Shalafi, transmitirá as suas instruções ao Palin e ao kender?
Raistlin abanou a cabeça.
— Não é necessário me chamar assim. Já não sou seu mestre.
Dalamar esboçou um sorriso sombrio e ambíguo. Levou a mão ao peito, desapertou um alfinete em forma de cisne preto e abriu as dobras da túnica de veludo preto. Na pele lisa do elfo, sangrando e parecendo recentes, destacavam-se cinco feridas, com o contorno e o tamanho da ponta de cinco dedos.
— Será sempre o meu professor — respondeu Dalamar. — Como vê, todos os dias estudo a lição que me ensinou.
— Ao que parece, está colhendo benefícios — observou Raistlin, com frieza. Com a mão direita, começou a tamborilar suavemente na mesa.
— Admirei-o — respondeu Dalamar com brandura. — Ainda te admiro. — Com um movimento rápido e sacudido, uniu as dobras do tecido, escondendo as feridas. — E hei de odiá-lo sempre.
Virando-se para Palin acrescentou:
— Adeus, Majere. Que os deuses da Magia te abençoem.
— E a todos nós — observou Jenna baixinho. — Adeus, Palin Majere. E — sorriu com malícia —, adeus, Usha Majere.
Jenna estendeu a mão a Dalamar. Pegando-a, este pronunciou rapidamente umas palavras de magia e ambos desapareceram.
Palin não retribuiu as despedidas. Tinha os olhos fixos em Raistlin.
— Tio, onde vou? Para onde me enviará?
— E a mim! — exclamou Tas, andante.
— E a mim! — interveio Usha, resoluta.
— Não... — começou Palin.
— Sim — interrompeu-o Raistlin em tom linear. — A garota vai contigo. Tem que ir. É a única que conhece o caminho.
— Para casa! — Usha compreendeu-o logo. E, retendo a respiração, acrescentou: — Vai me enviar de volta à minha terra!
— Envio-te de volta para que vá buscar isto. — Raistlin pousou o dedo esguio na ilustração do livro que ele e Dalamar tinham estado a folhear. Palin inclinou-se para olhar.
— A Pedra Preciosa Cinzenta! Mas... está quebrada! Foi o que os deuses afirmaram!
— Está quebrada — concordou Raistlin. — Cabe a você restaurá-la. Contudo, primeiro terá que tirá-la dos que a guardam — acrescentou, olhando, com ar expressivo, para Usha.
— Tio, vem conosco?
— Em espírito — replicou este. — Lhes darei toda a ajuda possível. Palin, não sou deste mundo — acrescentou, vendo o desapontamento do sobrinho. — O meu poder se foi. Posso apenas trabalhar através de ti.
Palin mostrou-se confuso.
— Orgulho-me constatar que confia tanto em mim, mas... por que me envia, tio? Há outros magos muito mais poderosos...
— Sobrinho, todos os magos de Krynn se encontram envolvidos nesta guerra. Os Vestes Cinzentas, Vermelhas, Brancas, Negras, desde o mestre feiticeiro ao aprendiz menor. O Conclave considerou-o o mais apto ao desempenho desta tarefa específica. Porquê? Têm lá os seus motivos, alguns aprovei, outros não. Basta dizer que os teus vínculos com a garota Irda constituem um dos fatores e os teus laços comigo, outro. Possui o Bastão de Magius e, possivelmente o mais importante, em tempos foi capaz de controlar a Pedra Preciosa Cinzenta.
— Não foi bem assim — respondeu Palin, pesaroso. — E contei com ajuda. O Dougan Martelo Vermelho encontrava-se lá.
— E desta vez também contará com ajuda. Não está só. — Raistlin olhou de relance para Tasslehoff, que se sentara no chão, fazendo um inventário dos objetos que guardava nos bolsos.
Seguindo o olhar do tio, Palin aproximou-se de Raistlin.
— Tio — murmurou. — Irei onde quiser e farei exatamente o que me ordenar. A Usha me acompanha, para descobrir o que aconteceu ao povo dela. Mas tem certeza de que quer que o Tasslehoff vá conosco? Não há dúvida que é o melhor kender que existe na face da Terra mas... bom... é um kender.
Raistlin pousou a mão no ombro de Palin.
— Por isso o envio — respondeu. — Sobrinho, os Kenders possuem uma qualidade que vai lhe ser útil. Os Kenders são imunes ao medo. — O abraço de Raistlin aumentou, e os seus dedos esguios enterraram-se na carne de Palin. — E, para onde vai, tal qualidade é inestimável.
19
Boatos.
Ribombos e chamas.
Erguem-se a vela.
Naquela manhã abafada e pesada de fumaça, as docas da baía de Branchala encontravam-se apinhadas de gente. As montanhas eram sacudidas por uma tempestade pavorosa. Os ribombos chegavam a Palanthas. Corriam, pela cidade rumores terríveis, que alastravam de casa em casa, avolumando-se e espalhando uma agitação cada vez maior por onde passavam.
No céu do Norte, um sinistro clarão avermelhado transformava a noite num dia irreal. No início, transpirou que arrebentara na cidade uma gigantesca conflagração. Alguns afirmavam que a Grande Biblioteca estava ardendo. Outros juravam ter visto a Torre da Feitiçaria Suprema num pasto de chamas. Outros ainda conheciam alguém que vira o fogo se derramar pelas janelas do Templo de Paladino.
Ninguém conseguia dormir. Todos viviam num estado de excitação inquieta. As pessoas acudiam ao templo e à biblioteca, se oferecendo para combater o incêndio, mas lá chegando, verificavam não haver fogo nenhum. Os Palancianos perambulavam pelas ruas, observando o fulgor avermelhado, que se tornava cada vez mais ígneo. Reuniam-se em pequenos magotes tensos, ansiosos. Depois de ouvido o último boato, afastavam-se de um e precipitavam-se para outro grupo. Por toda a cidade ouvia-se o repique desvairado dos sinos, esporadicamente interrompido pelo anúncio de qualquer boato que alguém considerava por bem transmitir.
No início, os Cavaleiros de Takhisis tentaram instaurar a ordem na cidade. Afluíram em chusma, percorreram as ruas marchando, dispersaram as multidões, obrigaram as pessoas a regressar para casa. Os cavaleiros fecharam as tabernas, tentaram silenciar os sinos. Mas, pela manhã, estes foram substituídos pelo rufar de tambores. Os cavaleiros que tinham marchado pelas ruas, podiam agora ser vistos a transpor os portões, em direção à estrada que ia de Palanthas à Torre da Feitiçaria Suprema.