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Logo ocorreu aos habitantes de Palanthas que a cidade fora libertada.

O júbilo foi grande. Agora, os boatos tornavam-se consistentes e céleres. A nação dos Elfos insurgira-se e desencadeara um ataque gigantesco contra os cavaleiros das trevas. A nação dos Duendes insurgira-se e desencadeara um ataque. Os Duendes e os Elfos... e por aí afora, até alguém jurar que ouvira dizer que um exército de kenders estava penetrando as muralhas da Torre da Feitiçaria Suprema. De novo se ouviu o repique dos sinos, desta vez a anunciar a vitória. Mas em breve se calavam.

A meio da manhã, o porto começou a ficar coalhado de navios que ancoravam rapidamente. As tripulações relatavam ter visto o mar em chamas. O clarão aibro que se via no céu, provinha de um incêndio mágico e pavoroso, que utilizava a água como combustível. Divulgada a nova, as pessoas acorreram às docas, a fim de ouvirem as histórias dos marinheiros e observarem o clarão avermelhado — um pôr do Sol na altura errada e no céu errado.

Depois, correu o rumor de que as florestas das montanhas de Vingaard se encontravam em chamas, que a Torre da Feitiçaria Suprema estava a sofrer um ataque por parte de uma força medonha, pavorosa e desconhecida, a mesma que conseguia fazer queimar a água tão facilmente como a madeira ressequida. Por sobre a cidade pairava uma coluna de fumaça, que provinha dos outeiros em chamas. E embora os incêndios que lavravam nas florestas não constituíssem uma ameaça, se os ventos mudassem...

— Onde deixou o barco? — perguntou Palin a Usha, depois de transporem os portões da Cidade Velha em direção à zona ribeirinha.

— No porto público. Paguei a um duende para vigiá-lo. Oh, Palin! — gritou Usha, em tom de desânimo e parando. — Olhe para aquela gente toda! Como vamos passar?

Metade da população da cidade afluira às docas e aguardava a chegada de mais navios, cochichando para os vizinhos ou observando o céu irreal, e mantendo um silêncio macambúzio. Entre eles e o porto erguia-se uma muralha de gente. Embora se tratasse de uma muralha viva, que rodopiava ao sabor de cada novo boato, permanecia compacta.

— Aquilo? Puf! Não há problema! — exclamou Tas em tom jovial. — Sigam-me!

Encaminhou-se para o grupo mais próximo, vários membros de grêmios que se abanavam, limpavam as testas suadas, falavam em tom baixo e excitado, calando-se para perguntar a quem passava:

— Quais as notícias?

— Com licença! — exclamou Tasslehoff com voz retumbante, puxando um dos membros pela manga comprida e ondulante. — Eu e os meus amigos estamos tentando...

Kender — guinchou o homem. Segurando a bolsa do dinheiro com uma das mãos e uma jóia que trazia ao pescoço com a outra, recuou precipitadamente três passos.

Foi bater com violência nas costas de outro homem, que se encontrava num grupo próximo a falar. Virando-se, este avistou Tas, levou a mão à bolsa de dinheiro e, rapidamente, recuou três passos. Em breve, as pessoas começavam aos empurrões, encontrões e cotoveladas, a fim de darem passagem.

— Obrigado — respondeu Tas em tom polido e avançando. Palin e Usha correram no seu encalço. Chegado à muralha humana seguinte, lançava um novo e estridente “Com licença!” e todo o processo recomeçava.

Deste modo, abriram caminho através da multidão de uma forma mais rápida e fácil do que esperavam. O fato de, à sua passagem, se ouvirem exclamações pontuais de “Abram alas!” e gritos repetidos de “Ei! Devolva-me isso!”, mais uns reboliços ocasionais, constituíram miudezas de menor importância.

A maior parte das pessoas acotovelava-se contra o paredão da cidade ou reunia-se em torno das docas comerciais, próximo do local onde as embarcações costeiras descarregavam as tripulações e os passageiros dos navios maiores, que se encontravam ancorados à entrada do porto. Ao chegar à margem, a multidão diminuía.

Sobre o edifício da capitania do porto, as bandeiras de aviso que tinham sido desfraldadas pendiam, flácidas. Contudo, os marinheiros não precisavam delas. Nessa manhã conturbada, constatavam, com os seus próprios olhos, que ninguém, no seu perfeito juízo, se arriscaria a aventurar-se no mar.

Usha não era mareante. Nada sabia a respeito de bandeiras de aviso e, mesmo que soubesse, lhes prestaria pouca atenção. Ia regressar à terra natal. Descobriria a verdade — fosse qual fosse, por terrível que fosse.

O medo pareceu aguçar-lhe os sentidos, apurar-lhe a vista, pois logo detectou a sua embarcação, embora esta se encontrasse amontoada no meio de muitas outras.

— Lá está! — exclamou, apontando. Palin olhou-a, com ar de dúvida.

— Parece tão pequena! — disse.

— Chega para nós três.

— Eu queria dizer... pequena... para nos aventurarmos no mar.

Palin olhou fixamente para a água. Nem sequer uma brisa agitava o porto. As ondas provocadas pelo movimento dos barcos, desvaneciam-se languidamente sob as docas. Não se viam aves marinhas a agitar a tona da água ou a lutar para apanhar as cabeças e os rabos de peixe. Não havia nuvens a toldar o céu, embora fossem constantes os clarões das faíscas e o ribombo dos trovões, vindos de leste. Derramando-se pelo horizonte, o estranho e pavoroso fulgor avermelhado refletia-se nas águas.

Palin abanou a cabeça.

— Não há vento — disse. — Não podemos cobrir toda esta distância até a sua terra apenas às custas dos remos. Temos de encontrar outra forma.

— Não, não temos — respondeu Usha, instando com ele para que a acompanhasse. — Palin, o barco é mágico, lembra-se? Me levará até em casa. Me levará até à minha terra — repetiu, com meiguice.

— Usha — disse Palin, puxando-lhe a mão, para refrear-lhe os passos apressados —, Usha...

No rosto dele, no tom da sua voz, a jovem viu e ouviu o que o mago se preparava para dizer. Era como se, mirando-se no espelho, visse o reflexo do seu próprio medo.

— Estou bem — respondeu. — Tenho você comigo.

Apertando-lhe a mão, encaminhou-se para a doca, em direção ao barco.

Usha saltou para a embarcação e pôs-se a inspecioná-la, para confirmar se a mesma se encontrava em condições de velejar. Palin e Tas permaneceram no molhe, causticados pelo calor, a postos para soltar as amarras quando chegasse a hora da largada. Várias pessoas miraram-nos com curiosidade, mas ninguém lhes disse nada, julgando possivelmente que protegiam o veleiro da intempérie e nunca lhes ocorrendo que planejavam zarpar.

Palin interrogou-se sobre o que faria, caso tentassem detê-los, e como lidaria com a situação.

Ou seguiam aquela rota ou, e isso lhe desagradava, viajavam pelo céu avermelhado. O que Usha dissera estava certo. O barco mágico regressaria à terra natal. Não havia outro meio, dado ninguém, nem sequer os membros do Conclave, conhecerem o paradeiro da pátria dos Irdas. Os dragões talvez soubessem. Mas esses travavam as suas próprias batalhas.

— Eu sou um grande marinheiro! — anunciou Tas, que se encontrava sentado na doca, a balançar as pernas e a perscrutar as profundezas do mar, na esperança de avistar algum peixe. — O Flint não. O Flint detestava a água. Nunca chegou a compreender porque existia à nossa volta. “Reorx nos deu a cerveja”, costumava dizer. “Tendo-a à mão, acha que pararia ali?” Tentei fazer-lhe ver que não era lá muito viável conduzirmos um barco em cerveja. Bom, talvez fosse, mas a espuma é muito incômoda. Mas o Flint insistia que os barcos são invenções do Demônio. Se calhar dizia aquelas coisas porque quase se afogou num. Já ouviu a história de quando o Flint quase se afogou? Um dia, quando o teu pai...