Tasslehoff estava de olhos arregalados, vítreos, como se, diante de si, visse algo terrível e inacreditável.
Palin precipitou-se para fora das árvores. O cristal que sobrepujava o Bastão de Magius derramou um fulgor esbranquiçado e cintilante.
A voz de Dougan chegou aos ouvidos de Usha:
— Menina, a Pedra Preciosa Cinzenta! É a única forma de ajudá-los! Pegue a Pedra Preciosa Cinzenta!
A jovem desviou o olhar de Palin e de Tas, voltando a se concentrar no seu objetivo, tal como lhe tinham ensinado.
Franqueando o anel formado pelos sete pinheiros mortos, esgueirou-se por entre eles. Ao centro, avistou a pilha de madeira que em tempos fora o altar. Agora que se encontrava perto, podia constatar a amplitude da devastação. Uma mão gigantesca qualquer, tomada de ódio e de fúria, reduzira a lascas a madeira, polida à mão e coberta de runas, que outrora fora tão linda.
Perpassou o espírito de Usha a recordação pungente dos Irdas a construírem aquele altar, a trabalharem horas a fio, com as ferramentas e a magia, esculpindo, alisando, areando, planando e impregnando a madeira com os seus encantamentos, encantamentos que manteriam a Pedra subjugada.
O Prot não aprovara, desde o início opusera-se ao plano. Recordou-o, ali, a observar, veio-lhe à mente o seu presságio.
— Querido amigo, querido pai, tinha razão — murmurou Usha, sentindo os olhos marejarem-se de lágrimas.
— Menina, a pedra! A pedra!
Usha refreou o desgosto. O altar era agora uma coisa morta. Os Irdas estavam mortos. Não podia restituir-lhes a vida. Mas, podia tentar reparar o mal que tinham causado.
A Pedra Preciosa Cinzenta, que em tempos irradiara um fulgor cinzento, peculiar e fantasmagórico, jazia agora no chão, fragmentada em dois e parcialmente soterrada no monte de lascas de madeira. Estada quebrada em dois, como uma casca de noz rachada. O interior da pedra encontrava-se vazio, como se, por muitos, muitos anos, um verme insidioso o tivesse corroído, até encontrar a saída.
Mesmo quebrada, a Pedra continuava a enlear, a fascinar. Era tão linda como feia, tão grande como pequena, tão cintilante como sombria, tão dura como macia. Usha estendeu para ela as mãos, tocou-a, ergueu-a. A pedra era imponderável e, contudo, teve a percepção de um grande peso. As inúmeras faces eram pontiagudas, cortantes, suaves. A pedra revelava-se fria ao tato, um frio que queimava.
Preparava-se para, triunfante, metê-la no alforje, quando um grito, repassado de terror, lhe gelou a alma.
Palin encontrava-se diante de Tasslehoff. O bastão ainda irradiava luz, mas o fulgor estava a esvair-se. As criaturas-sombras encontravam-se perto. A jovem já pouco conseguia vislumbrar de Tas — apenas a pontinha do penacho. De Palin, avistou os ombros e o rosto.
E no seu rosto a mesma expressão desvairada, de horror, que se apossara até do kender imune ao medo.
23
Não sou nada!
Palin acorreu em socorro de Tas. O kender deixara de desafiar os inimigos. Parecia que tentava ganhar coragem — coisa inédita num kender.
— Não tenho medo! — gritou Tas. — Estou... estou enfastiado! Vocês começam realmente a me dar cabo da paciência! De modo que... pirem-se! Eu... — O tom da voz tornou-se um gorgolejo. — Parem... parem com isso! Que pensam que estão fazendo?... Deixem de ser iguais a mim!
Palin não estivera observando as criaturas, mas sim pensando no encantamento, o que significava visualizar na mente as palavras que tinha que proferir. O resto da sua atenção dividia-se entre Usha, agora dentro da clareira de pinheiros, e Tasslehoff.
Ao grito de Tas, Palin, pela primeira vez, olhou diretamente para as criaturas.
E não conseguiu desviar os olhos.
Deu consigo a fitar a si mesmo. Diante de si, encontrava-se Palin.
— Quem é você? — perguntou Palin, com voz trêmula. Olhou a criatura nos olhos e não viu nada, nem sequer o seu próprio reflexo. — O que é você?
— Quem é você? O que é você? — escarneceu a sombra.
— Sou eu mesmo — respondeu Palin. Porém, mesmo falando, sentia-se desvanecer.
A criatura-sombra estava lhe chupando a vida do corpo.
— Não é nada — disse-lhe o espectro, falando com a boca de Palin.
— Nasceu do nada e ao nada voltará.
— Desvie o olhar! — chegou-lhe a voz de Raistlin a avisá-lo e a repercutir-se no bastão. — Desvie o olhar! Não olhe nos olhos!
Palin tentou desviar os olhos da imagem de si mesmo, mas não conseguiu. Continuou a fitá-la, hipnotizado. As palavras do encantamento foram liquefeitas por gotas de escuridão que lhe escorriam para a mente, quais pingos de chuva numa folha de papel. As recordações, a percepção de si mesmo, tornaram-se baças, indistintas e confusas, começando a desvanecer-se lentamente.
Teve a vaga impressão de que ouvira Usha chamar um nome: “Palin!”, e interrogou-se, como que em sonhos, sobre quem seria.
— Palin! — gritou-lhe Usha da clareira de pinheiros.
As criaturas-sombras aproximavam-se cada vez mais do mago e rastejavam em direção a Tasslehoff. Agora, a jovem só conseguia vislumbrar as meias, de um amarelo vivo, e a ponta do penacho do kender.
— Palin! Tas! Afastem-se! Corram!
Mas, às suas palavras, nenhum deles se moveu nem sequer reagiu. Palin continuava de olhos grudados nas criaturas, revelando aquela pavorosa expressão de horror.
— Menina, apresse-se, senão desaparecem! — gritou Dougan.
— O que posso... o que posso fazer? — perguntou Usha, sentindo-se impotente. O alforje com os apetrechos mágicos dados pelos Irdas encontravam-se longe, junto dos pés de Dougan. Não havia tempo para tentar alcançá-los.
— A Pedra Preciosa Cinzenta! — berrou Dougan. — Tente apanhá-las com a Pedra Preciosa Cinzenta! Eu ajudo, menina! Vai conseguir!
Quanto a isso, Usha tinha certas dúvidas, mas não conseguia pensar em mais nada. Precisava tomar uma ação rápida. A escuridão, que ia se apoderando de Palin, já quase engolira Tas.
Segurando uma metade da Pedra Preciosa Cinzenta em cada mão, Usha rastejou até às criaturas-sombras.
— Menina, não olhe para elas! — advertiu-a Dougan. — Faça o que fizer, não olhe para elas!
Usha não queria olhá-las, pois sempre que as via de relance, estremecia com um pavor que a revolvia por dentro. Fitou Palin, o seu adorado rosto, agora contorcido de medo.
E, de repente, Usha encontrava-se diante de si.
A jovem pestanejou, estupefata e apavorada.
— Menina, não a olhe nos olhos! — uivou Dougan. — Não olhe!
Usha fitou Palin, concentrou-se no mago, ignorando a voz da criatura que tentava atraí-la para as trevas. Desviando a cabeça, tenteou às cegas e puxou a Pedra Preciosa Cinzenta para a imagem de si mesma.
Um frio terrível, doloroso, entorpecente, gelou-lhe os dedos. Quase deixou tombar a Pedra. O sofrimento era atroz. Sentiu as veias rasgadas por lascas de gelo. Estava perdendo a consciência, a rodopiar para a escuridão.
— Apanhe-a! — ordenou Dougan. — Prenda-a na jóia!
Desesperada, aflita, Usha juntou com violência as duas metades da Pedra Preciosa Cinzenta.
O gelo tornou-se calor.
A escuridão tornou-se luz.
As criaturas-sombras desapareceram.
Olhando em redor, Usha interrogou-se, confusa, se realmente tinham estado lá. Depois, fitou a Pedra Preciosa, que as suas mãos enclavinhavam, e começou a tremer.
Arquejando e bufando, Dougan correu, aos sopetões para a jovem, fazendo levantar nuvens de poeira sufocante com as pesadas botas.